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O Som da Porcelana Quebrada

Atualizado: 10 de out.

Tereza, 65 anos — Ilha da Pedreira


Entre cacos e silêncios, Tereza descobre que quebrar também é forma de existir. A porcelana estilhaçada não pede desculpas. A gaivota observa. E o café, amargo, continua sendo servido.
Entre cacos e silêncios, Tereza descobre que quebrar também é forma de existir. A porcelana estilhaçada não pede desculpas. A gaivota observa. E o café, amargo, continua sendo servido.

Hoje o dia chegou com cheiro de fel. Acordei com o gosto de um ontem ainda guardado na boca — amargo, como café esquecido no bule. A luz entrou pela fresta da veneziana, tímida, como quem sabe que não é bem-vinda. Meus pés tocaram o chão da casa e senti a frieza da Ilha da Pedreira, como se ela tivesse se instalado dentro de mim.

O mar não canta mais para mim. Já cantou. Já gritou. Já me embalou em noites de vinhos e promessas. Agora ele só murmura, como um velho que perdeu a fé. Três casamentos, três filhos, três diplomas — e nenhum lugar onde eu queira estar. A matemática da minha vida é exata demais para caber em poesia. Eu somei muitos traumas e muitas dores. Mas, ainda assim, às vezes, eu tento.

Hoje vi uma gaivota parada no poste. Parada. Como eu. E pensei: será que ela também coleciona ex-amigos? Será que ela também já se decepcionou com o céu? Será que ela também já quis mudar e não conseguiu?

A xícara caiu. Mas não foi acidente. Eu joguei. Com força. Com vontade. Com prazer. E o som da porcelana se despedaçando foi mais bonito que qualquer música que já ouvi. Eu quebrei. E não pedi desculpas.

A casa está cheia de objetos que não me reconhecem mais. A xícara de Lisboa, o lenço de Istambul, o porta-retrato sem foto. Tudo me olha como quem pergunta: cadê você? E eu não sei responder. Me perdi entre aeroportos e terapias, entre promessas e silêncios. Me perdi tentando ser alguém que não doía.

O sal do mar não cura mais. Arde. E eu, que já fui tantas, hoje sou só Tereza. A amarga. A que não atende o telefone nem retorna mensagens. A que não escreve mais cartas. A que olha para o céu e vê rachaduras. A que quebra xícaras e não recolhe os cacos.

Talvez amanhã eu junte os pedaços. Talvez cole com ouro, como fazem alguns japoneses. Mas hoje, não. Hoje deixo espalhado. Hoje deixo ferir. Hoje deixo mostrar.

O lençol negro ainda dança na janela. Mas agora não guarda luto. Guarda aviso. Aqui mora uma mulher que não se desculpa mais por existir. E bebe café amargo.

Entre cacos e silêncios, eu sou o som que não se pede desculpas.

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Texto criado por Silvia Rocha para a seção Diário Coletivo, do Espaço Vida Integral, inspirada em uma mulher que conheceu.

Diário Coletivo é um espaço dedicado a dar voz a personagens que compartilham vivências, dores e descobertas. Neste local, cada relato se abre como uma janela para o mundo interno — real ou simbólico — de quem atravessa emoções humanas universais. Psicologia e narrativa se entrelaçam, revelando que, embora singulares, todas as existências são feitas da mesma matéria sensível: histórias que merecem ser escutadas. Os nomes, idades e localizações são fictícios, mas as experiências são essencialmente reais — ecos de vidas que tocam e transformam.

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