O Gosto Doce da Lágrima
- Silvia Rocha

- 4 de out.
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de out.
Clara, 47 anos — Ilha da Ternura Esquecida

Hoje acordei com gosto de lágrima na boca. Era doce. Como se o afeto tivesse dormido comigo e deixado um rastro nos lábios. O sol entrou pela fresta da janela como quem pede licença. Me levantei devagar, com o corpo pedindo desculpas por existir. A pele arde, os pés doem, e o espelho já não me reconhece. Mas ainda sou eu. Ou o que sobrou de mim.
A Ilha da Ternura Esquecida me conhece. No começo, eu só passava. Depois, comecei a ficar. Hoje, sou parte da paisagem. Já me viram descalça, com os pés rachados e a alma também. Já pedi breja dizendo que era meu aniversário. Às vezes é. Às vezes não. Às vezes eu só quero que alguém me olhe com gentileza.
A beleza não me salvou. Ela me protegeu por um tempo. Me fez parecer inteira quando eu já estava em pedaços. Mas quando os pedaços começaram a cair, ninguém quis segurar. Nem eu.
A pele desidratou. O corpo afinou. Os olhos, esses, nunca mentiram. Eles sempre disseram: tem dor aqui. Mas ninguém escutava. Dor bonita não comove. Só confunde.
Tem lembranças que eu não lembro. Só sinto. O corpo sabe. Ele se encolhe quando alguém fala alto. Ele treme com certos cheiros. Ele chora antes de mim. São coisas que aconteceram, eu acho. Mas não sei dizer quando, nem como. Só sei que estão aqui. Dormem comigo. Acordam antes de mim.
Mas, hoje, por um breve momento, eu acordei outra. Não mais a mulher que pede drinques na esquina, nem a que mente pra ganhar afeto. Acordei com um resto de esperança grudado na pele. Talvez amanhã eu volte a andar descalça, com a dor nos olhos e a sede na alma. Mas hoje, por um instante, eu fui lembrança e possibilidade. E isso, por enquanto, é o que ainda me segura.
Acordei lembrando de um sonho que tive na madrugada, quase de manhã. Sonhei com uma menina. Tinha uns seis anos. Vestido florido, cabelo preso com fita. Sapatos brilhantes. Ela segurou minha mão para atravessar a rua. Como quem protege. Como quem guia. Talvez fosse minha filha. Talvez eu fosse a filha, recebendo conforto de minha mãe. Ela me olhava confiante, como quem acredita em mim. Como quem ainda vê em mim algo que vale a pena. Ela me perguntou se eu estava triste. Eu disse que não. Mas meus olhos disseram outra coisa. Ela não respondeu. Só apertou minha mão mais forte. Como quem segura o mundo.
Acordei com a mão fechada. Como se ainda segurasse a dela. E o gosto de lágrima ainda estava ali. Doce. Como se a ternura tivesse voltado pra me lembrar: Você ainda sente. Você ainda está aqui. Você merece ser amada. E, por um instante, a ilha não era mais dos sonhos, mas da promessa de um novo amanhecer, onde a dor se misturava à doçura, e a vulnerabilidade se transformava em força silenciosa.
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TTexto criado por Silvia Rocha para a seção Diário Coletivo, do Espaço Vida Integral, inspirada em uma mulher que conheceu.
Diário Coletivo é um espaço dedicado a dar voz a personagens que compartilham vivências, dores e descobertas. Neste local, cada relato se abre como uma janela para o mundo interno — real ou simbólico — de quem atravessa emoções humanas universais. Psicologia e narrativa se entrelaçam, revelando que, embora singulares, todas as existências são feitas da mesma matéria sensível: histórias que merecem ser escutadas. Os nomes, idades e localizações são fictícios, mas as experiências são essencialmente reais — ecos de vidas que tocam e transformam.





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