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O Corvo, a Sereia e a Ilha do Silêncio

Atualizado: 10 de out.

Ângelo Miguel, 51 anos — Ilha do Silêncio 


"No santuário do amanhecer, entre o mar e o céu, Miguel Ângelo escreve sua crônica, com o corvo tatuado como testemunha silenciosa de suas memórias e esperanças."
"No santuário do amanhecer, entre o mar e o céu, Miguel Ângelo escreve sua crônica, com o corvo tatuado como testemunha silenciosa de suas memórias e esperanças."

Hoje acordei com gosto amargo na boca. Não sei se foi o vinho barato ou o sonho que tive. Sonhei com a Ilha dos Sonhos. Faz tempo que não vou lá. A última vez foi quando a cabeça estava cheia demais, e a alma parecia um quarto sem janela. Lá tudo é mais leve. Até o silêncio tem cheiro de lavanda.

 

A rua me conhece pelo nome. Ângelo Miguel. Cinquenta e um anos, talvez cinquenta e dois. O tempo não me visita com calendário. Ele vem em forma de dor nas costas, de saudade da infância, de tatuagem desbotada. Meu corpo é um mapa de tudo que vivi. Cada desenho é uma lembrança que não quis esquecer. Ou que não consegui.

 

Tatuei um corvo no braço direito. Fiz depois que perdi um amigo de infância. Ele dizia que corvos são mensageiros entre mundos. Eu não sei se acredito, mas gosto de pensar que ele ainda me visita quando o corvo coça. Tem também uma sereia nas costas. Fiz quando conheci Lúcia. Ela me salvou de mim mesmo por uns meses. Me deu banho, comida, cama e silêncio. Às vezes ainda durmo na casa dela. Quando a cabeça está melhor. Quando não estou tão bêbado de culpa.

 

O álcool é meu confessionário. Bebo pra esquecer, mas ele me lembra. Bebo pra dormir, mas ele me acorda. Bebo porque não sei rezar. E porque o mundo é pesado demais quando estou sóbrio. Já tentei parar. Juro. Mas aí vem a lembrança dos meus filhos. Alguns ainda me chamam de pai. Outros não. E eu entendo. O pai que nunca me chamou de filho também me ensinou a desaparecer. A mulher que me amou com medo. E a outra que me deixou com raiva.

 

Hoje estou num alojamento. Tem cama, tem sopa, tem gente. Mas não tem silêncio. E eu preciso do silêncio pra conversar com meus fantasmas. Eles são educados, mas exigentes. Querem atenção. Querem que eu lembre. Que eu sinta. Que eu escreva. Às vezes escrevo em guardanapos. Outras vezes, nas paredes. Já fui expulso por isso. Dizem que é vandalismo. Eu digo que é desespero.

 

Na Ilha dos Sonhos, ninguém me julga. Lá eu sou só Miguel. Ou Ângelo. Ou nenhum. Caminho pelas ruas de areia, converso com árvores, escuto o mar. O mar fala comigo. Ele me chama de irmão. Me conta segredos que só quem sofre entende. Lá tudo respira diferente. Até o vento parece saber meu nome.

 

Hoje encontrei na rua uma moça. Ela me sorriu e disse algumas palavras doces. Não me perguntou nada. Não me julgou. Me entregou algumas porções de amor e seguiu seu caminho. Como quem acende uma vela e deixa a luz ali, sem exigir nada em troca. Será que ainda existe essa gentileza no mundo? Eu me pergunto, enquanto o gosto de ferrugem na boca parece, por um instante, menos amargo.

 

Tenho medo de morrer sem que ninguém saiba. De virar estatística. De ser enterrado sem nome. Por isso escrevi. Pra deixar rastros. Pra que alguém, um dia, leia e diga: “Ângelo Miguel existiu. E sentiu.”

 

Hoje não vou beber. Ou talvez só um pouco. Só pra acalmar os fantasmas. Eles estão agitados. Querem falar da Ilha. Querem que eu volte. Talvez eu vá. Talvez eu fique. Talvez eu apenas escreva. E talvez, só talvez, o silêncio da Ilha me espere, não para esquecer, mas para lembrar o que realmente importa. A rua me conhece pelo nome. E eu, às vezes, também.


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Texto criado por Silvia Rocha para a seção Diário Coletivo, do Espaço Vida Integral, inspirada em um homem que conheceu e conversou algumas vezes.

Diário Coletivo é um espaço dedicado a dar voz a personagens que compartilham vivências, dores e descobertas. Neste local, cada relato se abre como uma janela para o mundo interno — real ou simbólico — de quem atravessa emoções humanas universais. Psicologia e narrativa se entrelaçam, revelando que, embora singulares, todas as existências são feitas da mesma matéria sensível: histórias que merecem ser escutadas. Os nomes, idades e localizações são fictícios, mas as experiências são essencialmente reais — ecos de vidas que tocam e transformam.

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