Redescobrindo a Intimidade em Casamentos Longevos: Uma Perspectiva Integrativa
- Silvia Rocha

- 20 de set.
- 10 min de leitura
Por Silvia Rocha
Quantos casais, após décadas de uma vida construída a dois, se encontram vivendo como estranhos sob o mesmo teto? A rotina, as responsabilidades e as transformações individuais muitas vezes minam silenciosamente a conexão que um dia os uniu, deixando um vácuo de intimidade e um sentimento de solidão compartilhada.
Este fenômeno, longe de ser um mero acaso, é um campo fértil para a psicologia e a sociologia. Estudos como os publicados no Journal of Marriage and Family [1] apontam que a satisfação conjugal pode diminuir drasticamente em casamentos de longa duração, especialmente após a saída dos filhos, na fase conhecida como "ninho vazio". A ciência nos ajuda a compreender as bases neurobiológicas e comportamentais dessa desconexão, mas a experiência humana é que nos revela a profundidade da dor e a urgência da redescoberta.
Este artigo propõe uma abordagem integrativa para explorar as transformações da intimidade ao longo do tempo e, mais importante, como é possível resgatá-la — não como uma tentativa de retornar ao passado, mas como um movimento em direção a um novo futuro, mais consciente, conectado e afetivamente renovado.

O Panorama Estatístico: Casamentos e Separações na Maturidade
Os números revelam uma realidade complexa sobre os relacionamentos na terceira idade. Segundo dados do IBGE de 2022, cerca de 30% dos divórcios no Brasil acontecem após os 50 anos, fenômeno conhecido como "divórcio grisalho" ou "divórcio cinza" [2]. Este percentual representa um crescimento significativo de 30% nos últimos anos, indicando uma mudança cultural profunda na forma como pessoas maduras encaram seus relacionamentos.
Paradoxalmente, os dados também mostram um crescimento nos casamentos entre pessoas com mais de 60 anos. Em 2022, foram registrados 35.029 casamentos entre pessoas de 60 a 64 anos e 39.759 uniões entre indivíduos de 65 anos ou mais [3]. Este aparente contraste revela que, enquanto alguns casais se separam após décadas juntos, outros encontram na maturidade uma nova oportunidade para o amor.
A idade média no momento do divórcio também é reveladora: segundo relatório do IBGE de 2021, os homens tinham em média 43,6 anos e as mulheres 40,6 anos na data da separação [4]. Estes números sugerem que muitas dessas separações ocorrem justamente no período de transição para a maturidade, quando questões existenciais e mudanças hormonais se intensificam.
Em que contextos esse tipo de comportamento costuma surgir? A literatura aponta que o período entre os 40 e 60 anos é particularmente vulnerável para crises conjugais, coincidindo com a menopausa, andropausa, síndrome do ninho vazio e questionamentos sobre propósito de vida.
2. As Múltiplas Dimensões da Intimidade Conjugal
Para entender a perda de conexão, primeiro precisamos compreender o que é intimidade. Segundo Moss e Schwebel (1993), a intimidade não é um conceito único, mas um mosaico composto por cinco dimensões essenciais [5]:
• Emocional: A capacidade de compartilhar sentimentos vulneráveis, oferecer e receber apoio e praticar a empatia.
• Social: A sensação de pertencimento como um casal, integrando-se a redes de amigos e familiares.
• Sexual: A expressão do desejo, do afeto físico e da conexão carnal, que se transforma ao longo dos anos.
• Intelectual: O compartilhamento de ideias, sonhos, e a construção de um universo mental comum.
• Recreativa: A alegria de realizar atividades prazerosas juntos, desde um hobby a uma simples caminhada.
O que ocorre em casamentos longevos é que, frequentemente, o casal passa a funcionar em "modo de manutenção", priorizando a estabilidade e a administração da vida cotidiana em detrimento do cultivo ativo dessas dimensões. A ausência de uma delas já é suficiente para gerar uma sensação de distanciamento, mesmo que não existam conflitos abertos.

3. Os Ladrões Silenciosos da Conexão: Fatores de Risco
Diversos fatores, tanto internos quanto externos, contribuem para o afastamento em relacionamentos duradouros. Reconhecê-los é o primeiro passo para a mudança.
🔹 Transformações Fisiológicas e Emocionais
Com o envelhecimento, o corpo e a mente passam por mudanças significativas. A diminuição de hormônios como testosterona e estrogênio pode impactar a libido e a autoimagem [6]. Paralelamente, eventos como a aposentadoria, o luto pela perda de entes queridos ou o surgimento de doenças crônicas podem alterar o estado emocional, exigindo uma readaptação do casal que nem sempre acontece de forma sincronizada [7].
🔹 A Síndrome do Ninho Vazio
A saída dos filhos de casa é um marco que, para muitos casais, revela um vazio. A dinâmica, antes centrada na parentalidade, precisa ser renegociada. Mitchell & Lovegreen (2009) destacam que este pode ser um período tanto de redescoberta dolorosa quanto de uma nova e positiva fase, a depender da qualidade do vínculo que o casal cultivou ao longo dos anos [1].
🔹 A Acomodação Afetiva
Talvez o mais sutil e perigoso dos fatores seja a acomodação. O casal se acostuma com a presença um do outro a ponto de deixar de "ver" a pessoa ao lado. O pesquisador John Gottman chama isso de "distanciamento silencioso": o casal está funcionalmente junto, mas emocionalmente separado, vivendo em mundos paralelos [8].
4. Perspectivas Teóricas: Psicanálise e Terapia Sistêmica
Sob a ótica psicanalítica, a crise na intimidade conjugal pode ser compreendida através do conceito de repetição compulsiva e transferência. Segundo Freud, tendemos a reproduzir nos relacionamentos adultos os padrões aprendidos na infância [9]. Em casamentos longevos, esses padrões podem se cristalizar, levando o casal a reviver dinamicamente conflitos não resolvidos da história pessoal de cada um.
A Terapia Sistêmica, desenvolvida por pioneiros como Salvador Minuchin e Murray Bowen, compreende o casal como um sistema dinâmico em constante interação [12]. Nesta perspectiva, a perda de intimidade não é vista como um problema individual, mas como um desequilíbrio sistêmico que afeta e é afetado por todos os elementos do sistema familiar.
O conceito de homeostase familiar é central: o sistema tende a manter seu equilíbrio, mesmo que disfuncional. Em casamentos longevos, padrões de comunicação, papéis e regras implícitas podem se tornar rígidos, impedindo a adaptação às mudanças naturais da vida. A diferenciação do self, conceito de Bowen, torna-se crucial - a capacidade de manter a individualidade dentro da união, sem se fundir nem se isolar completamente [13].
5. A Terapia de Casal: Caminhos para a Reconexão
A Terapia de Casal emerge como uma ferramenta fundamental para casais que desejam redescobrir a intimidade. Diferentes abordagens oferecem caminhos específicos para a reconexão:
🔹 Terapia Focada nas Emoções (EFT)
Desenvolvida por Sue Johnson, a EFT baseia-se na Teoria do Apego de John Bowlby [15]. Esta abordagem compreende que os conflitos conjugais frequentemente refletem necessidades de apego não atendidas. O terapeuta ajuda o casal a identificar os ciclos negativos de interação e a acessar as emoções primárias subjacentes - geralmente medo do abandono ou da rejeição. O processo terapêutico na EFT envolve três estágios: desescalada dos conflitos, reestruturação das interações e consolidação das mudanças. Estudos mostram que 70-73% dos casais que passam pela EFT apresentam melhora significativa, e 90% mostram algum progresso [16].
🔹 Terapia Cognitivo-Comportamental para Casais
Esta abordagem foca na identificação e modificação de padrões de pensamento disfuncionais e comportamentos problemáticos. O terapeuta ajuda o casal a desenvolver habilidades de comunicação, resolução de conflitos e expressão de necessidades de forma assertiva [17]. Técnicas como o treinamento em comunicação, contratos comportamentais e reestruturação cognitiva são utilizadas para quebrar ciclos negativos e construir interações mais positivas.
🔹 Terapia Integrativa
Muitos terapeutas contemporâneos adotam uma abordagem integrativa, combinando elementos de diferentes escolas teóricas conforme as necessidades específicas do casal. Esta flexibilidade permite abordar tanto aspectos emocionais profundos quanto padrões comportamentais concretos, oferecendo um tratamento mais personalizado e eficaz.

Na Prática: 5 Sinais de que a Intimidade Precisa de Atenção
Traduzir a teoria em observações cotidianas pode ser um poderoso catalisador para a mudança. Aqui estão alguns sinais práticos de que a conexão do casal pode estar em risco:
1 Conversas Superficiais: Os diálogos se limitam a questões logísticas (contas a pagar, tarefas domésticas, saúde) e não há mais espaço para compartilhar sonhos, medos ou reflexões profundas.
2 Ausência de Toque Afetivo: O contato físico se restringe ao sexual (e muitas vezes nem a isso), desaparecendo os gestos espontâneos de carinho, como um abraço, um beijo inesperado ou andar de mãos dadas.
3 Preferência pela Individualidade: Um ou ambos os parceiros consistentemente preferem passar o tempo livre sozinhos ou com outras pessoas, e a ideia de fazer um programa a dois gera mais cansaço do que entusiasmo.
4 Ausência de Projetos Compartilhados: O casal não planeja mais viagens, não tem hobbies em comum e não demonstra interesse em construir novos sonhos juntos.
5 Comunicação Defensiva: As conversas frequentemente se transformam em discussões, com cada um defendendo sua posição ao invés de buscar compreensão mútua.
Quais padrões são recorrentes em histórias de pessoas que enfrentaram situações semelhantes? A literatura clínica mostra que casais que conseguem superar essas crises geralmente passam por um período de "luto" pela relação anterior, seguido de uma fase de redescoberta e reconstrução consciente do vínculo.
6. Estratégias Práticas para a Reconexão
A literatura científica e a experiência clínica apontam caminhos concretos para restaurar a intimidade:
🔹 Rituais de Conexão: Estabelecer rituais diários de conexão, como 15 minutos de conversa sem distrações, pode recriar espaços de intimidade. Gottman sugere o "ritual de reencontro" ao final do dia, onde cada parceiro compartilha os pontos altos e baixos de sua jornada [8].
🔹 Redescoberta da Curiosidade: Fazer perguntas abertas sobre os sonhos, medos e reflexões do parceiro, como se o estivesse conhecendo pela primeira vez. A curiosidade genuína é um antídoto poderoso contra a acomodação.
🔹 Atividades Novas Compartilhadas: Pesquisas mostram que casais que se engajam em atividades novas e desafiadoras juntos experimentam aumento na satisfação conjugal. Isso pode incluir desde aprender uma nova habilidade até viajar para lugares inexplorados [18].
🔹 Educação Sexual Continuada: Programas de educação sexual para a terceira idade têm mostrado eficácia em ajudar casais a ressignificar a intimidade física, adaptando-se às mudanças corporais e descobrindo novas formas de prazer e conexão [19].

Conclusão: O Convite para um Novo Começo
Ao refazer essas reflexões da literatura científica sobre intimidade, reafirmei algo que venho aprendendo ao longo dos meus quase 30 anos de casamento: a intimidade não é um destino, mas um jardim que exige cultivo constante. As sementes plantadas no início de um relacionamento não florescem para sempre sem água, sol e cuidado. A boa notícia é que nunca é tarde para voltar a regar.
O amor maduro tem uma beleza única. Ele não se alimenta da efervescência da paixão juvenil, mas da solidez construída ao longo dos anos, da resiliência diante das tempestades e da profunda aceitação do outro. Redescobrir a intimidade na maturidade é um convite para se apaixonar novamente — não pela imagem idealizada do passado, mas pela pessoa real que está ao seu lado, com todas as suas complexidades e transformações.
Ao longo dessas três décadas de casamento, eu e meu parceiro aprendemos que cada fase da vida exige novos acordos, novas escutas e novos gestos. Estar atento às necessidades pessoais e relacionais de cada etapa é um ato de amor. E quando a rotina ameaça silenciar a conexão, é hora de lembrar: quem éramos quando nos apaixonamos? O que nos encantou um no outro? Quais eram nossos sonhos, nossos rituais, nossas risadas antes dos filhos, antes das responsabilidades?
Lembrar do jovem entusiasmado que habita em nós é um gesto de carinho com a própria história. Ele não desapareceu — apenas está esperando ser convidado de volta. E esse reencontro pode revigorar a maturidade, trazendo leveza, desejo e presença. Se há saudade do que foram, é porque ainda existe amor. E onde há amor, há sempre um caminho. Um caminho que pode ser trilhado com novas conversas, novos olhares e a coragem de dizer: "Vamos tentar de novo?"
Para ilustrar essa jornada de reconexão, o filme Uma Divã para Dois (2012), com Meryl Streep e Tommy Lee Jones, é de uma sensibilidade ímpar. Ele retrata um casal que, após décadas de um casamento morno, decide fazer terapia para reacender a chama. A jornada, ainda que desconfortável e cheia de vulnerabilidades, mostra que o amor pode, sim, ser reinventado. Para aprofundar essa reflexão, convido você a ler a análise complementar que preparei: "Um Divã para Dois: Redescobrindo a Intimidade na Dança da Rotina."
Que este convite ao reencontro inspire corações a redescobrirem o amor com ternura, coragem e presença. Um abraço, Silvia Rocha.

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, graduada em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de vínculos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA pela FGV/RJ e Pós-Graduação pela FAAP/SP.
Contato:
Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta
WhatsApp: (12) 98182-2495
Referências Bibliográficas
[1] Mitchell, B. A., & Lovegreen, L. D. (2009). The empty nest syndrome in midlife families: A myth or reality? Journal of Family Issues.
[2] G1 Globo. (2025). 'Divórcio cinza': por que quem tem 50+ decide cada vez mais pela separação. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2025/03/06/divorcio-cinza-por-que-quem-tem-50-decide-cada-vez-mais-pela-separacao.ghtml
[3] ARPEN-PR. (2024). Cresce o número de casamentos entre pessoas acima de 60 anos. Disponível em: https://www.arpenpr.org.br/site/conteudo-noticia/9609
[4] BBC Brasil. (2023). 'Divórcio grisalho': o crescente fenômeno das separações na terceira idade. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ln72zg5x2o
[5] Moss, J., & Schwebel, A. (1993). Defining intimacy in romantic relationships. Family Relations.
[6] Laumann, E. O., et al. (2006). Sexual dysfunction among older adults. Archives of Internal Medicine.
[7] Carstensen, L. L., et al. (2011). Emotional experience improves with age. Psychology and Aging.
[8] Gottman, J., & Silver, N. (1999). The Seven Principles for Making Marriage Work.
[9] Freud, S. (1920). Além do Princípio do Prazer. Imago Editora.
[10] Klein, M. (1946). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. Imago Editora.
[11] Lacan, J. (1998). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar Editor.
[12] Minuchin, S. (1974). Families and Family Therapy. Harvard University Press.
[13] Bowen, M. (1978). Family Therapy in Clinical Practice. Jason Aronson.
[14] Satir, V. (1972). Peoplemaking. Science and Behavior Books.
[15] Johnson, S. M. (2004). The Practice of Emotionally Focused Couple Therapy. Brunner-Routledge.
[16] Johnson, S. M., & Greenman, P. S. (2006). The path to a secure bond: Emotionally focused couple therapy. Journal of Clinical Psychology.
[17] Baucom, D. H., & Epstein, N. (1990). Cognitive-Behavioral Marital Therapy. Brunner/Mazel.
[18] Aron, A., et al. (2000). Couples' shared participation in novel and arousing activities. Journal of Personality and Social Psychology.
[19] DeLamater, J. (2012). Sexual expression in later life. Journal of Aging and Health.





Comentários