Cinderela Depois do Baile: Quando o Palácio se Torna uma Gaiola Dourada e a Coroa Pesa
- Silvia Rocha

- 13 de set.
- 7 min de leitura
Atualizado: 22 de out.
A história que nos contaram termina com um beijo e uma promessa: "e viveram felizes para sempre". Cinderela, a gata borralheira, finalmente escapa da humilhação e se casa com o príncipe. O sapatinho de cristal serviu, a coroa foi posta, e o palácio se tornou seu novo lar. Mas o que acontece quando o baile acaba, a música para e o silêncio do "para sempre" começa a ecoar?
Esta é a jornada da Princesa Insatisfeita, a continuação não contada da história de Cinderela. É uma crise existencial que surge após a conquista do objetivo, a desilusão de perceber que a validação externa — o casamento, o status, a coroa — não garante a felicidade interna. Esta insatisfação, no entanto, não é um sinal para abandonar o relacionamento, mas um chamado profundo para amadurecer, encontrar a própria voz e transformar a si mesma e a sua relação de dentro para fora.

A Síndrome da Impostora Real: A Gata Borralheira no Trono
Mesmo com vestidos de seda e uma coroa na cabeça, a princesa se olha no espelho e vê a mesma menina coberta de cinzas. Ela vive com um medo constante de ser desmascarada, de que alguém descubra que ela não pertence àquele lugar. Esse sentimento tem nome: Síndrome do Impostor. Descrita pela primeira vez pelas psicólogas Pauline Clance e Suzanne Imes, essa experiência se manifesta como uma incapacidade de internalizar as próprias conquistas, atribuindo o sucesso à sorte ou a fatores externos (1, 2).
A antiga ferida da desvalorização, infligida por anos de abuso emocional pela madrasta e suas filhas, não é curada magicamente com uma mudança de status. Na psicanálise, poderíamos interpretar a madrasta não apenas como uma figura externa, mas como um "complexo materno negativo" internalizado, uma voz crítica que continua a sussurrar em sua mente: "Você não é boa o suficiente" (3). A mudança de cenário, do porão ao palácio, não silencia essa voz. A princesa precisa, ativamente, iniciar um trabalho de cura para reescrever essa narrativa interna.
Estudos recentes mostram que a Síndrome do Impostor afeta milhões de pessoas, especialmente mulheres em posições de destaque, que sentem que precisam provar seu valor constantemente (4). Para a nossa princesa, cada banquete, cada reunião do conselho, é um teste onde ela teme falhar e ser enviada de volta para a cozinha.
Trocando uma Servidão por Outra: A Gaiola Dourada de Cinderela
A princesa se livrou da servidão imposta pela madrasta, mas logo percebe que pode ter entrado em outra. As cinzas e os trapos foram trocados por espartilhos apertados e regras de etiqueta. A cozinha foi substituída por um palácio, mas a sensação de aprisionamento retorna. Agora, ela se sente presa às expectativas da realeza, ao papel de "esposa perfeita" e futura rainha.
A Terapia Sistêmica Familiar nos ensina que toda família (ou, neste caso, a família real) é um sistema com regras, papéis e expectativas próprias (5). Ao entrar nesse novo sistema, a princesa sente a pressão para se conformar. Sua identidade, antes definida pela opressão, agora corre o risco de ser definida por seu papel real. Se ela não estabelecer seus próprios limites e redescobrir quem é para além do título de "esposa do príncipe", a liberdade conquistada será apenas uma ilusão.
Este é um paralelo direto com a vida moderna. Quantas vezes buscamos um objetivo — um casamento, uma promoção, um diploma — acreditando que ele nos trará a liberdade, apenas para nos sentirmos presos a novas responsabilidades e expectativas? A jornada da princesa nos lembra que a verdadeira liberdade não está no cenário, mas na capacidade de sermos autênticos dentro dele.

O Vazio no Trono ao Lado: O Príncipe Desencantado
Na fantasia, o Príncipe era o salvador, a personificação do resgate e da felicidade eterna. Na convivência diária, porém, a fantasia se desfaz. A princesa descobre que ele não é um arquétipo, mas um homem real, com suas próprias sombras, inseguranças e falhas. Ele ronca, tem dias ruins e não tem todas as respostas.
O psicólogo analítico Carl Jung diria que ela projetou seu "animus" — a representação arquetípica do masculino em sua psique — na figura do príncipe (6). Ela não se apaixonou pelo homem, mas pela ideia do que ele representava: a salvação. Quando a projeção se desfaz, o vazio aparece. A responsabilidade pela sua felicidade, que ela havia delegado a ele, volta a ser dela.
Este é o ponto de virada crucial. A tendência inicial poderia ser culpar o príncipe por não corresponder à fantasia. "Você não me faz feliz!". Mas a princesa, em sua jornada de amadurecimento, começa a olhar para dentro. Ela percebe que nenhum ser humano pode ter a tarefa de preencher o vazio do outro. Como afirma o mestre da Comunicação Não Violenta, Marshall Rosenberg, nossas necessidades são de nossa responsabilidade (7). Esperar que o outro as adivinhe e satisfaça é a receita para o ressentimento.

A Reforma do Reino Interior (Sem Abdicar do Trono)
Aqui, a história toma um rumo inesperado e poderoso. A princesa entende que o divórcio ou a fuga seriam apenas trocar de cenário novamente, repetindo o padrão. A verdadeira transformação acontece quando ela decide ficar e lutar — não pelo príncipe, mas por si mesma dentro da relação. Ela inicia a reforma de seu reino interior.
Cultivar seus próprios interesses: Ela se lembra da menina que cantava com os pássaros e era amiga dos ratinhos. O que aquela menina gostava de fazer? Ela redescobre paixões e projetos que são só seus, para além do seu papel de princesa. Talvez ela crie um jardim, estude botânica, aprenda a tocar um instrumento ou se envolva em causas sociais do reino. Ela começa a construir uma identidade que não depende de seu status ou de seu marido.
Comunicar suas necessidades: Armada com uma nova autoconsciência, ela aprende a se expressar de forma autêntica. Em vez de acusações ("Você nunca me ouve!"), ela usa a linguagem da responsabilidade e da vulnerabilidade ("Quando fico sozinha por longos períodos, sinto-me triste e desconectada. Gostaria que pudéssemos passar um tempo juntos, apenas nós dois, esta semana."). Ela convida o Príncipe a conhecê-la de verdade, para além do sapatinho de cristal.
Transformar o relacionamento: Ao mudar sua própria postura, ela quebra a dinâmica disfuncional. O Príncipe, que talvez também se sentisse preso no papel de "salvador", é convidado a descer do pedestal e se tornar um parceiro real. A relação amadurece de um conto de fadas para uma parceria consciente, onde duas individualidades se apoiam, em vez de uma salvar a outra. Este processo pode envolver psicotraumas, pois a necessidade de ser "salva" muitas vezes nasce de feridas de abandono ou desamparo na infância, que agora podem ser vistas e cuidadas pelo casal (8).

A Segunda Coroação: A Soberania Interior
A verdadeira jornada de Cinderela não terminou no baile; ela começa agora. A insatisfação não era um erro, mas o chamado para uma segunda coroação: não a de rainha de um reino, mas a de soberana de si mesma.
É o momento de integrar sua história — a força da menina resiliente que sobreviveu às cinzas com a sabedoria da mulher que agora entende as complexidades da vida. É encontrar sua voz dentro do palácio e redefinir o que significa ser "rainha" de sua própria vida. A coroa externa se torna opcional, um acessório, pois a verdadeira coroa, a da autoestima e do autoconhecimento, já foi forjada em seu interior.

Uma Carta para a Realeza que Habita em Nós
Querido leitor, querida leitora, talvez já tenha ocorrido de estar em uma situação que parecia ideal por fora — um relacionamento, uma carreira, uma fase da vida que aparentava perfeição — enquanto um vazio inexplicável se instalava por dentro. E então, a pergunta silenciosa: “É só isso?”
Essa sensação não representa fracasso. Trata-se de um chamado da própria essência para uma redescoberta. É a força interior, aquela mesma que sustentou durante os momentos difíceis, agora pedindo espaço para se manifestar. Não para dominar, mas para guiar com amor, compaixão e autenticidade.
A jornada não exige o abandono do que foi construído, mas convida à transformação — para que o espaço criado possa acolher a totalidade do ser. É um convite à honestidade nas relações, à vulnerabilidade compartilhada, à presença verdadeira. A pessoa mais importante a ser resgatada mora dentro. E essa soberania interior, uma vez reconhecida, torna-se inabalável.
Com carinho, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casais, sistêmicas e familiares.
Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
Contato:
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Referências Bibliográficas
(1) CLANCE, P. R.; IMES, S. A. The imposter phenomenon in high achieving women: Dynamics and therapeutic intervention. Psychotherapy: Theory, Research & Practice, v. 15, n. 3, p. 241, 1978.
(2) ABRAMS, A. Yes, Impostor Syndrome Is Real. Here's How to Deal With It. Time Magazine, 20 de junho de 2018.
(3) JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2011.
(4) Kets de Vries, M. F. R. The Impostor Syndrome: A Pervasive Fear of Being Exposed. INSEAD Knowledge, 2005.
(5) MINUCHIN, S. Famílias: Funcionamento e Tratamento. Porto Alegre: Artmed, 1990.
(6) VON FRANZ, M.-L. A Interpretação dos Contos de Fada. São Paulo: Paulus, 1990.
(7) ROSENBERG, M. B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.
(8) LEVINE, P. A. O Despertar do Tigre: Curando o Trauma. São Paulo: Summus, 1999.



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