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Filme "Um Divã para Dois": Redescobrindo a Intimidade na Dança da Rotina

Atualizado: há 6 dias

Por: Silvia Rocha


No vasto universo do cinema, algumas obras transcendem a mera ficção e se tornam espelhos da condição humana. Um Divã para Dois (Hope Springs, 2012), dirigido por David Frankel e protagonizado com maestria por Meryl Streep e Tommy Lee Jones, é uma dessas raras produções. O filme nos conduz a uma reflexão íntima — e por vezes dolorosa — sobre os desafios dos relacionamentos de longa duração, a rotina que se instala silenciosamente e a coragem necessária para reacender a chama da intimidade.


A tela se transforma em um reflexo sensível das dinâmicas que muitos casais enfrentam em seu cotidiano. A trajetória de Kay e Arnold Soames, após três décadas de casamento, convida à introspecção: revisitar os vínculos afetivos, reconhecer as expectativas não verbalizadas, os silêncios que se acumulam e os gestos que deixaram de ser feitos. Este artigo propõe uma leitura das camadas psicológicas presentes na obra, utilizando-a como ponto de partida para compreender os caminhos possíveis de renovação, reconexão e transformação nos relacionamentos afetivos.


A busca pela reconexão: Kay e Arnold Soames em um momento de reflexão sobre seu casamento.
A busca pela reconexão: Kay e Arnold Soames em um momento de reflexão sobre seu casamento.

A Rotina como Vilã e o Despertar para a Redescoberta

O casamento de Kay e Arnold, após três décadas, ilustra de forma pungente como a rotina pode se tornar uma vilã silenciosa, corroendo a intimidade e o romantismo. A ausência de toques, de conversas profundas e até mesmo de um simples bom dia se torna um sintoma de um distanciamento que, embora não intencional, é profundamente doloroso. Como bem observa o psicólogo Eugenio Mussak, a rotina é frequentemente acusada de ser a grande vilã, levando a frases como “Nosso casamento não resistiu à rotina” [1]. No entanto, a rotina em si não é o problema, mas sim a forma como o casal lida com ela e a negligência em nutrir a relação.

 

Nesse contexto, a iniciativa de Kay de buscar a terapia de casal com o Dr. Feld não é apenas um ato de desespero, mas um grito de esperança e um movimento em direção à individuação, um conceito central na psicologia analítica de Carl Jung. Para Jung, a individuação é o processo de se tornar um indivíduo, uma unidade indivisível e inteira, e isso muitas vezes envolve confrontar as sombras e as partes negligenciadas de si mesmo e do relacionamento [2]. Kay, ao tomar essa atitude, está buscando não apenas salvar seu casamento, mas também resgatar sua própria identidade e desejo, que foram ofuscados pela vida a dois.

 

A Terapia de Casal: Um Espaço para a Reconstrução da Ponte

A decisão de Kay e Arnold de embarcar em um fim de semana de aconselhamento com o Dr. Feld nos leva ao cerne da terapia de casal. Este espaço terapêutico, muitas vezes visto com resistência, especialmente por Arnold, é um ambiente seguro para que as interações, a comunicação e os padrões de comportamento sejam compreendidos e reavaliados. A terapia de casal ajuda a desenvolver uma compreensão mais profunda das interações do casal, com o terapeuta atuando com empatia e cuidado, focando na compreensão mútua [3].

 

O filme demonstra a dificuldade inicial de Arnold em se abrir, em expressar sentimentos e em revisitar a intimidade física e emocional. Essa resistência é um reflexo de padrões de comportamento arraigados e, por vezes, de traumas não elaborados. Gabor Maté, em suas obras, frequentemente aborda como experiências passadas e traumas podem moldar nossas respostas emocionais e a forma como nos relacionamos, criando barreiras invisíveis que impedem a conexão genuína [4]. A terapia, nesse sentido, torna-se um caminho para desvendar essas barreiras e reconstruir a ponte entre os parceiros.

 

Um estudo sobre a eficácia das terapias comportamentais de casal aponta que elas aumentam os padrões de comunicação construtivos, oferecendo estratégias práticas e individualizadas para uma comunicação mais clara e eficaz [5]. Em 'Um Divã para Dois', vemos o Dr. Feld guiando Kay e Arnold através de exercícios que, embora constrangedores no início, são essenciais para que eles voltem a se enxergar e a se tocar, não apenas fisicamente, mas emocionalmente.

 

Dados Estatísticos e a Realidade Contemporânea

A busca por terapia de casal reflete uma realidade crescente. No Brasil, por exemplo, dados indicam que a procura por terapia de casal tem aumentado, especialmente após períodos de grande estresse, como a pandemia de COVID-19, que exacerbou as tensões nos relacionamentos. Embora não haja um dado estatístico preciso para o ano de 2012 (ano de lançamento do filme), a relevância do tema da rotina e da busca por ajuda profissional para casais é atemporal e universal. Em sociedades ocidentais, a expectativa de vida mais longa e a valorização do bem-estar individual têm levado a uma maior conscientização sobre a necessidade de investir na qualidade dos relacionamentos. A Islândia, por exemplo, é um país que tem investido em programas de apoio à família e à saúde mental, reconhecendo a importância de relações saudáveis para o bem-estar social.

 

A Profundidade Teórica e a Estrutura Multidisciplinar da Análise

O filme ‘Um Divã para Dois’ oferece um terreno fértil para uma análise multidisciplinar, tocando em diversas áreas da psicologia e ciências correlatas. A jornada de Kay e Arnold pode ser vista através das lentes da psicanálise, da psicologia analítica, da terapia sistêmica e até mesmo da neurobiologia, revelando a complexidade do psiquismo humano e das relações.

 

A psicanálise destaca a redescoberta da sexualidade como expressão de desejos inconscientes e conflitos reprimidos, enquanto a psicologia analítica interpreta a busca de Kay por terapia como uma jornada de individuação e integração da sombra. A terapia sistêmica enxerga o casal como parte de um sistema relacional em desequilíbrio, cujos padrões de interação precisam ser revistos.


Já a neurobiologia sugere que o distanciamento emocional pode ser resultado de microtraumas acumulados, afetando o vínculo afetivo e a intimidade. Por fim, a espiritualidade, inspirada pela logoterapia de Viktor Frankl, aponta para a necessidade de ressignificar o sentido da vida a dois, especialmente em casamentos de longa duração. Juntas, essas lentes revelam a complexidade dos vínculos humanos e o potencial transformador da terapia.

 

Na Prática: Sinais para Observar e Caminhos para a Redescoberta da Intimidade

O filme ‘Um Divã para Dois’ não é apenas uma história; é um convite à auto-observação e à reflexão sobre nossos próprios relacionamentos. A jornada de Kay e Arnold nos oferece valiosos insights sobre como a rotina pode se instalar e como podemos, proativamente, buscar a redescoberta da intimidade e da paixão. Aqui estão alguns sinais para observar e ações práticas que o filme pode despertar:

 

•        A Rotina Silenciosa: Observe se a comunicação no seu relacionamento se tornou superficial, focada apenas em questões práticas, sem espaço para o compartilhamento de sentimentos, sonhos e medos. A ausência de conversas profundas e a diminuição do contato físico espontâneo podem ser indicadores de que a rotina está cobrando seu preço.


•        Medo da Vulnerabilidade: Perceba se há resistência em expressar suas necessidades e desejos, ou se o parceiro demonstra dificuldade em se abrir. A vulnerabilidade é a porta para a intimidade, e o medo de ser rejeitado ou incompreendido pode criar barreiras significativas. O filme mostra a dificuldade de Arnold em se despir emocionalmente, um desafio comum em muitos relacionamentos.


•        A Importância do Toque: Reflita sobre a qualidade e a frequência do toque físico em seu relacionamento. Não se trata apenas de sexualidade, mas de carinho, abraços, mãos dadas. O toque é uma linguagem poderosa que nutre o vínculo e a conexão. A redescoberta do toque em Kay e Arnold é um marco em sua jornada.


•        Busca por Ajuda Profissional: Considere a terapia de casal como um recurso valioso, não como um sinal de fracasso, mas como um investimento no relacionamento. Assim como Kay, ter a coragem de buscar um mediador pode abrir caminhos para a compreensão mútua e a reconstrução de pontes que pareciam desmoronadas.


•        Reavaliar Expectativas: O envelhecimento traz mudanças, e é fundamental que as expectativas sobre o relacionamento e a sexualidade sejam reavaliadas e comunicadas abertamente. A aceitação das fases da vida e a adaptação a elas são cruciais para manter a vitalidade do vínculo. 


A história de Kay e Arnold não é apenas sobre um casal que tenta salvar seu casamento, mas sobre a capacidade humana de se transformar, de se adaptar e de encontrar um novo sentido para o vínculo.
A história de Kay e Arnold não é apenas sobre um casal que tenta salvar seu casamento, mas sobre a capacidade humana de se transformar, de se adaptar e de encontrar um novo sentido para o vínculo.

O Amor que se Reinventa na Coragem de Amar

Ao final desta jornada cinematográfica e psicológica, sinto que ‘Um Divã para Dois’ nos deixa uma mensagem poderosa: o amor, em sua essência, é um ato contínuo de coragem e reinvenção. A história de Kay e Arnold não é apenas sobre um casal que tenta salvar seu casamento, mas sobre a capacidade humana de se transformar, de se adaptar e de encontrar um novo sentido para o vínculo, mesmo diante das adversidades e do tempo que insiste em nos moldar.

 

Acredito profundamente na resiliência do espírito humano e na capacidade dos relacionamentos de florescerem novamente, desde que haja vontade, abertura e, por vezes, a ajuda de um olhar externo e profissional. A terapia de casal, como vimos, não é um atestado de falência, mas um convite à construção de uma nova narrativa, mais consciente e plena. É um espaço onde a vulnerabilidade se torna força e onde o diálogo, antes silenciado, encontra voz.

 

Que a história de Kay e Arnold sirva de inspiração para todos nós, para que possamos olhar para nossos próprios relacionamentos com mais carinho, atenção e, acima de tudo, com a coragem de amar e de nos reinventar a cada dia. Se você se reconheceu nos desafios vividos por esse casal e deseja aprofundar sua compreensão sobre como cultivar relações mais saudáveis, convido à leitura do artigo Terapia de Casal: 5 Mitos que Impedem os Casais de Buscar Ajuda. Nele, compartilho reflexões e ferramentas práticas para fortalecer o diálogo, a intimidade e a conexão emocional.


Um abraço, Silvia Rocha 


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master
Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.

 






Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.

 

Contato:

Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta

 

Referências Bibliográficas

[1] MUSSAK, Eugenio. Rotina no casamento. Disponível em: https://eugeniomussak.com.br/rotina-no-casamento/. Acesso em: 19 set. 2025. 

[2] JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964. 

[3] TROFASAUDE. Terapia de Casal: a quem se destina e quais os benefícios. Disponível em: https://www.trofasaude.pt/artigos/terapia-de-casal-a-quem-se-destina-e-quais-os-beneficios/. Acesso em: 19 set. 2025. 

[4] MATÉ, Gabor. O Corpo Guarda as Marcas: Trauma, Cura e a Sabedoria Inata do Corpo. São Paulo: Summus Editorial, 2019. 

[5] CUNHA FERREIRA, Luana. Os 5 princípios da Terapia de Casal eficaz. Disponível em: https://luanacunhaferreira.com/os-5-principios-da-terapia-de-casal-eficaz/. Acesso em: 19 set. 2025. 

[6] FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 [7] MINUCHIN, Salvador. Famílias e Terapia Familiar. Porto Alegre: Artmed, 2009. 

[8] VAN DER KOLK, Bessel A. O Corpo Guarda as Marcas: Cérebro, Mente e Corpo no Tratamento do Trauma. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. 

[9] FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração. Petrópolis: Vozes, 2019.

 

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