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Filme "45 Anos": Quando o Passado Reescreve o Presente

Atualizado: 21 de out.

Em nossa jornada pela vida, construímos relacionamentos que se tornam a paisagem de nosso cotidiano. Acreditamos conhecer o terreno que pisamos, as colinas e vales da intimidade compartilhada. Mas o que acontece quando um tremor revela uma falha geológica, uma verdade enterrada há tanto tempo que sua existência parecia impossível? O filme britânico “45 Anos” (2015), dirigido por Andrew Haigh, nos convida a testemunhar exatamente isso: a desestabilização de um casamento que parecia sólido como uma rocha, na semana da comemoração de suas bodas de opala.

 

Kate (Charlotte Rampling) e Geoff (Tom Courtenay) vivem uma rotina tranquila e previsível no interior da Inglaterra. A uma semana de sua festa de 45 anos de casados, uma carta chega. O corpo de Katya, o primeiro amor de Geoff, foi encontrado congelado e perfeitamente preservado nos Alpes Suíços, 50 anos após sua morte trágica. A notícia atinge o casal como um meteoro, descongelando não apenas um corpo, mas um passado que Geoff guardava em um sótão empoeirado de sua memória. Para Kate, a revelação é um soco no estômago, um questionamento profundo sobre a própria fundação de sua vida a dois. Será que ela foi, de fato, a protagonista de sua própria história de amor?

 

Este artigo propõe uma análise psicológica deste filme delicado e devastador, mergulhando nas camadas de significado que se escondem sob a superfície de uma vida aparentemente comum. Vamos explorar como o luto não elaborado, os segredos e as memórias reprimidas podem funcionar como fantasmas que assombram o presente, mesmo após quase cinco décadas.


O filme britânico “45 Anos” (2015), dirigido por Andrew Haigh, nos convida a testemunhar exatamente isso: a desestabilização de um casamento que parecia sólido como uma rocha, na semana da comemoração de suas bodas de opala.
O filme britânico “45 Anos” (2015), dirigido por Andrew Haigh, nos convida a testemunhar exatamente isso: a desestabilização de um casamento que parecia sólido como uma rocha, na semana da comemoração de suas bodas de opala.

O Fantasma no Sótão: Luto Complicado e a Persistência do Trauma

A reação de Geoff à notícia é o epicentro do terremoto emocional que se segue. Ele não apenas se abala; ele regride. Mergulha em uma nostalgia febril, buscando no sótão as fotografias e memórias de Katya. Do ponto de vista da psicanálise, o que vemos é um caso clássico de luto não elaborado ou complicado. Sigmund Freud, em seu ensaio “Luto e Melancolia” (1917), já nos alertava que o luto, embora seja uma reação natural à perda, pode se tornar patológico quando o indivíduo não consegue se desvincular do objeto perdido e reintegrar sua energia psíquica na vida [1].

 

Geoff nunca processou a perda de Katya. A morte súbita e a ausência de um corpo para o ritual de despedida congelaram o processo. A descoberta do corpo, 50 anos depois, o força a confrontar essa dor latente. A metáfora do corpo preservado no gelo é poderosa: enquanto Kate e Geoff envelheceram, com as marcas do tempo em seus rostos e corpos, Katya permanece uma imagem intacta da juventude, uma idealização que o tempo não pôde tocar. Como competir com um fantasma?

 

Essa idealização do amor perdido é um fardo pesado para Kate. Ela se vê em uma triangulação emocional com uma pessoa que nunca conheceu, mas cuja presença se torna mais real e ameaçadora do que nunca. O ciúme que ela sente não é apenas do passado, mas da possibilidade de que a história de amor mais significativa de seu marido não tenha sido a dela. É o que a terapia sistêmica chama de ciúme retroativo, uma obsessão com o passado amoroso do parceiro que corrói a segurança do relacionamento presente. 


Como competir com um fantasma? O ciúme que Kate sente não é apenas do passado, mas da possibilidade de que a história de amor mais significativa de seu marido não tenha sido a dela.
Como competir com um fantasma? O ciúme que Kate sente não é apenas do passado, mas da possibilidade de que a história de amor mais significativa de seu marido não tenha sido a dela.

Quando o “Nós” se Quebra: Uma Análise Multidisciplinar da Crise

Para compreender a profundidade da crise de Kate e Geoff, podemos olhar para o filme através de múltiplas lentes, que se complementam para formar um quadro mais completo da experiência humana.


Sob a ótica da Psicologia Clínica, a narrativa revela uma dinâmica conjugal marcada por padrões de comunicação disfuncional. O silêncio e os segredos acumulados ao longo de 45 anos criam um abismo emocional entre o casal. A crise desencadeada pela revelação do passado exige uma renegociação dos papéis e da própria identidade relacional, evidenciando o impacto do não-dito nas relações de longa duração.


Do ponto de vista da Neurobiologia, o trauma da perda vivida por Geoff e o choque emocional enfrentado por Kate ativam respostas profundas de estresse. A ruminação constante de Geoff sobre o passado e a ansiedade crescente de Kate podem ser compreendidas como manifestações de um sistema nervoso em estado de alerta, refletindo os efeitos neurobiológicos de eventos emocionais intensos e não resolvidos.


Na abordagem da Terapia Sistêmica, o casal é entendido como um sistema em desequilíbrio. A chegada da carta funciona como um agente perturbador da homeostase conjugal, exigindo uma reorganização interna. A questão central que se impõe é se esse sistema terá resiliência suficiente para se adaptar à nova realidade ou se caminhará para a ruptura.


Segundo a Psicologia Analítica, inspirada por Carl Jung, Katya pode ser interpretada como a representação da anima — a imagem feminina interior de Geoff. Trata-se de uma figura idealizada, nunca integrada à consciência. Para Kate, a crise representa uma jornada de individuação forçada, na qual ela é levada a confrontar a sombra de seu casamento e a redescobrir sua identidade para além do papel de esposa.


Por fim, sob a lente da Sociologia, o filme dialoga com uma tendência social crescente conhecida como “divórcio grisalho”. Dados do IBGE indicam que, em 2021, aproximadamente 26% dos divórcios no Brasil ocorreram entre pessoas com mais de 50 anos [2]. 45 Anos captura o dilema de uma geração que, diante do aumento da expectativa de vida, começa a questionar se vale a pena manter um relacionamento insatisfatório até o fim da vida.

 

Sinais para Observar: O Seu Relacionamento Tem um “Fantasma no Sótão”?

A história de Kate e Geoff, embora específica, toca em verdades universais sobre relacionamentos de longa duração. Refletir sobre o filme pode nos ajudar a identificar sinais de alerta em nossas próprias vidas. Aqui estão alguns pontos para reflexão:

 

1  Idealização de Relacionamentos Passados:   A fala frequente e idealizada sobre um amor antigo pode sinalizar que o vínculo atual está sendo comparado e desvalorizado. Quando o passado se torna referência constante, o presente perde espaço para florescer.

2  Segredos e “Zonas Proibidas”:   Certos assuntos tornam-se verdadeiros tabus dentro da relação. “Sótãos” emocionais são criados, onde o acesso é negado ao outro. A ausência de abertura para explorar essas áreas pode gerar distanciamento e insegurança.

3  Sentimento de Ser um “Plano B”:   A sensação de não ocupar o lugar principal na vida afetiva do parceiro pode ser dolorosa. Quando paira a impressão de que o vínculo atual é fruto das circunstâncias — e não da escolha genuína — instala-se um sentimento de desvalorização.

4  Comunicação Baseada em Suposições:   Com o tempo, muitos casais passam a acreditar que já conhecem profundamente o outro, deixando de perguntar, escutar e se surpreender. A comunicação torna-se pautada por suposições, e os diálogos sobre medos, sonhos e vulnerabilidades vão se rareando.

5  Perda da Identidade Individual:   A fusão excessiva entre os papéis conjugais e a identidade pessoal pode levar ao apagamento de interesses, amizades e paixões individuais. Quando não há espaço para cultivar o próprio mundo interno, o relacionamento deixa de ser encontro e passa a ser dissolução.


    É nesse processo de olhar para as rachaduras que encontramos a possibilidade de uma reconstrução mais autêntica e resiliente.
É nesse processo de olhar para as rachaduras que encontramos a possibilidade de uma reconstrução mais autêntica e resiliente.

A Coragem de Olhar para a Rachadura

Ao final do filme, durante a festa, ao som de “Smoke Gets in Your Eyes”, a câmera foca no rosto de Kate. Em seu olhar, vemos a dor da traição, não necessariamente de uma infidelidade carnal, mas de uma vida construída sobre uma base que ela agora percebe ser frágil. A pergunta que fica no ar não é se o amor deles era real, mas se ele era completo.

 

Como terapeuta, vejo a história de “45 Anos” não como uma sentença de morte para relacionamentos longos, mas como um convite à coragem. A coragem de abrir os sótãos empoeirados, de falar sobre os fantasmas, de questionar as verdades que tomamos como garantidas. É um trabalho difícil e, por vezes, doloroso. Mas é nesse processo de olhar para as rachaduras que encontramos a possibilidade de uma reconstrução mais autêntica e resiliente.

 

Se você se identificou com os dilemas de Kate e Geoff e sente que seu relacionamento poderia se beneficiar de um espaço seguro para explorar essas questões, talvez seja o momento de buscar um novo olhar. Em meu artigo “Terapia de Casal: 5 Mitos que Impedem os Casais de Buscar Ajuda”, exploro como o acompanhamento profissional pode iluminar esses caminhos. Lembre-se: cuidar do seu relacionamento é cuidar de uma das partes mais importantes da sua história.

 

Um abraço, Silvia Rocha 


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master
Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.







Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.


Contato: 

Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta

WhatsApp: (12) 98182-2495

 

Referências Bibliográficas

[1] Freud, S. (1917). Luto e Melancolia. Em Obras Completas, vol. 12. Companhia das Letras.

[2] BBC News Brasil. (2023).'Divórcio grisalho': o crescente fenômeno das separações após décadas de casamento. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ln72zg5x2o 


 


 


 

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