Quando o Corpo Dói, Mas a Alma Canta
- Silvia Rocha

- 4 de out.
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de out.
Seu Nico, 83 anos — Ilha do Movimento: Acordar com o Vento

Hoje o vento me acordou com cheiro de maresia e lembrança. As dores vieram junto, como quem bate à porta sem ser convidado: ombro, joelho, coluna — todos querendo conversar. Mas eu não discuto com o tempo. Ele fala, eu escuto. Faço café, visto minha camisa mais elegante e saio. O céu está cor de festa, azul com pontinhos dourados. A bicicleta me espera como uma velha amante: elétrica, fiel, charmosa. Subo nela como quem sobe num palco.
O primeiro giro do pedal é sempre uma conversa com o corpo. Ele hesita, reclama, mas depois se entrega. A rua me recebe com o cheiro da manhã e o som das folhas dançando. E eu danço junto, mesmo que por dentro tudo esteja meio torto.
A Ilha do Movimento tem cheiro de manga madura e som de risada solta. Poucos sabem meu nome, mas todos me reconhecem. Sou o senhor da bicicleta que parece moto. O que toca aquele instrumento diferente nas noites de festa. O que sorri com os olhos e coleciona instantes como quem coleciona estrelas.
O nome deles? Não sei. Mas reconheço o timbre da gargalhada, o jeito como dançam, o silêncio que fazem quando escutam minha música. Outro dia, uma moça me perguntou se eu não tinha medo de sair à noite. Medo? Medo eu tinha era de não viver. A noite é meu altar. Quando toco, as dores se calam. O ombro reclama, a coluna protesta, mas o coração vibra.
Tem dias em que a dor vem mais cedo. Antes do café, antes do sol. Ela se instala como uma visita sem hora para ir embora. Mas mesmo assim, eu saio. Porque ficar é mais dolorido que ir.
No meu álbum de fotos tem uma estrada que parece sonho. Eu e o motorhome, cruzando desertos, montanhas, fronteiras. Argentina, Chile, Bolívia... cada parada uma história, cada curva uma lembrança. Dormi sob estrelas que sussurravam meu nome. Acordei com cheiro de café feito em fogãozinho portátil e o canto de pássaros que nunca vi antes.
Lembro de uma noite no Atacama, o céu tão cheio de estrelas que parecia um mar invertido. Eu chorei. Não sei se de beleza ou de saudade. Talvez dos dois.
O amanhã? Não sei. E não quero saber. Hoje é suficiente. Hoje tem gosto de fruta fresca e som de música boa.
Minha mente funciona como uma vitrola antiga: gira, range, repete. Às vezes toca uma faixa que não existe. Às vezes inventa uma. Tem dias em que esquece o nome da dor, mas lembra o nome da esperança.
Às vezes ela me leva de volta à infância, ao cheiro da roupa lavada no tanque, ao som da voz da minha mãe chamando para o almoço. Às vezes ela me deixa aqui, quieto, olhando o céu e esperando que ele me diga alguma coisa.
Às vezes penso que viver é como tocar uma melodia que ninguém escreveu. A gente improvisa, erra, volta, inventa. Mas, no fim, se tiver alma, valeu.
Hoje, quando o sol se pôs atrás da montanha e o céu ficou cor de saudade, eu sorri. E meus olhos, esses dois azuis marotos, ainda dançaram. Porque viver, meu bem, é isso: dançar mesmo com dor.
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Texto criado por Silvia Rocha para a seção Diário Coletivo, do Espaço Vida Integral, inspirada em um homem que teve a alegria de conhecer.
Diário Coletivo é um espaço dedicado a dar voz a personagens que compartilham vivências, dores e descobertas. Neste local, cada relato se abre como uma janela para o mundo interno — real ou simbólico — de quem atravessa emoções humanas universais. Psicologia e narrativa se entrelaçam, revelando que, embora singulares, todas as existências são feitas da mesma matéria sensível: histórias que merecem ser escutadas. Os nomes, idades e localizações são fictícios, mas as experiências são essencialmente reais — ecos de vidas que tocam e transformam.





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