Psicanálise, História e Contemporaneidade: Reflexões sobre a Mente Humana na Era Digital
- Silvia Rocha

- 24 de ago.
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Em um mundo cada vez mais conectado e em constante transformação, a mente humana se vê diante de desafios sem precedentes. A velocidade das informações, a pressão por desempenho e a complexidade das relações sociais contemporâneas moldam novas formas de sofrimento psíquico. Mas como compreender essas nuances à luz de saberes que, embora centenários, ainda ressoam com profunda relevância? Este artigo propõe uma jornada através da história da psicanálise, desde suas raízes freudianas até suas manifestações na contemporaneidade, explorando como seus conceitos fundamentais, juntamente com as contribuições da psicologia analítica e da terapia sistêmica familiar, nos ajudam a decifrar os enigmas da saúde mental na era digital.

A Gênese da Psicanálise e Seus Conceitos Fundamentais
A psicanálise, campo de estudo e prática clínica, tem sua gênese inegavelmente ligada a Sigmund Freud, no final do século XIX. Embora a origem exata do conceito seja objeto de debate, foi Freud quem a sistematizou como um constructo teórico baseado na hermenêutica, buscando a interpretação dos sentidos implícitos e do que está além do objeto [1]. Essa disciplina pode ser compreendida em três níveis distintos, conforme Laplanche e Pontalis (1996) [1]:
Método de investigação: Consiste em evidenciar o significado inconsciente de palavras, ações e produções imaginárias (sonhos, fantasias, delírios) de um sujeito, utilizando principalmente as associações livres.
Método psicoterápico: Baseado na investigação, especificado pela interpretação controlada da resistência, transferência e desejo. É o que comumente se refere como “análise” ou “tratamento psicanalítico”.
Conjunto de teorias: Um corpo de conhecimento sistematizado sobre a estrutura e o funcionamento da vida psíquica, que aprimorou seu próprio campo de saber.
Para Freud (1922), a psicanálise é o trabalho que leva à consciência do paciente o “psíquico recalcado” [1]. A associação livre, técnica central, permite a tradução de ideias recalcadas que geram mal-estar psíquico, através da elaboração entre analista e analisando. A psicanálise, portanto, pode interpretar não apenas o indivíduo e suas relações mais próximas, mas também a relação entre analista e paciente (com conceitos como transferência e contratransferência) e as relações sociais, englobando artes, cultura, filosofia, política e história, como exemplificado em sua análise do “mal-estar na civilização” [1].
Psicanálise na Contemporaneidade: Desafios e Relevância
A psicanálise, embora nascida em um contexto social e cultural distinto, demonstra uma notável capacidade de adaptação e relevância para os desafios da contemporaneidade. As rápidas transformações sociais, o avanço tecnológico e a globalização impõem novas configurações à subjetividade humana, gerando fenômenos como a ansiedade generalizada, a depressão e o esgotamento profissional. A psicanálise, com sua lente voltada para o inconsciente e para as dinâmicas profundas da psique, oferece um arcabouço teórico robusto para compreender e intervir nesses novos mal-estares.
Dados recentes do Ministério da Saúde e de outras instituições de pesquisa revelam um cenário preocupante da saúde mental no Brasil. Em 2017, um estudo da OMS já indicava que 18 milhões de brasileiros sofriam de algum transtorno mental, o equivalente a 9,3% da população [2]. Mais alarmante ainda, dados de 2024 mostram que o Brasil registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais, o maior número desde 2014, com um aumento de 134% nos benefícios concedidos por problemas de saúde mental [3, 4]. A pandemia de COVID-19 exacerbou essa crise, com estimativas de aumento de mais de 25% nos casos de depressão e ansiedade apenas no primeiro ano [5].
Esses números refletem não apenas uma maior conscientização e diagnóstico, mas também a intensificação de fatores estressores na vida moderna: o isolamento social, a incerteza econômica, a superexposição a informações (muitas vezes negativas) e a pressão por uma vida perfeita nas redes sociais. A psicanálise, ao focar na singularidade do sujeito e em suas formações inconscientes, permite uma compreensão aprofundada de como esses fatores externos são internalizados e processados, gerando sintomas e sofrimento.

Analogias com o Momento Atual da Sociedade e Comportamentos Contemporâneos
A sociedade contemporânea, muitas vezes descrita como líquida por Zygmunt Bauman, caracteriza-se pela fluidez das relações, pela efemeridade dos valores e pela constante busca por gratificação instantânea. Essa liquidez se manifesta em comportamentos como o consumo desenfreado, a busca incessante por validação nas redes sociais e a dificuldade em estabelecer vínculos profundos e duradouros. A psicanálise, ao analisar o “mal-estar na civilização” (Freud), nos ajuda a compreender como a renúncia pulsional e as exigências sociais geram um custo psíquico, que se manifesta em angústias e neuroses. Hoje, esse mal-estar pode ser observado na epidemia de burnout, na nomofobia (medo de ficar sem celular) e na síndrome de FOMO (Fear of Missing Out), comportamentos que revelam uma profunda desconexão com o self e uma dependência excessiva do externo.
A psicologia analítica de Carl Gustav Jung, por sua vez, oferece uma perspectiva complementar ao abordar o inconsciente coletivo e os arquétipos. Em um mundo globalizado, onde as culturas se entrelaçam e as identidades se tornam mais fluidas, a busca por sentido e individuação torna-se ainda mais premente. A psicologia analítica nos convida a olhar para os símbolos, os mitos e os sonhos como manifestações de um inconsciente que transcende o individual, conectando-nos a uma herança psíquica comum. A fragmentação da identidade, a polarização social e a crise de valores podem ser compreendidas, sob essa ótica, como um desequilíbrio entre o ego e o self, uma desconexão com os arquétipos que dão estrutura e sentido à existência humana. A busca por espiritualidade, o crescente interesse por práticas de autoconhecimento e a valorização da diversidade podem ser vistos como tentativas de resgatar essa conexão perdida.
A terapia sistêmica familiar, por sua vez, amplia o olhar para as dinâmicas relacionais, compreendendo o indivíduo como parte de um sistema complexo. Em uma sociedade onde as estruturas familiares tradicionais se reconfiguram e as relações se tornam mais complexas (famílias monoparentais, recasadas, homoafetivas), os desafios na comunicação e na resolução de conflitos se intensificam. A terapia sistêmica familiar, ao focar nos padrões de interação, nos papéis familiares e nas lealdades invisíveis, oferece ferramentas para desatar nós e promover relações mais saudáveis e funcionais. A violência doméstica, o bullying e a alienação parental, por exemplo, são fenômenos que podem ser compreendidos e abordados a partir de uma perspectiva sistêmica, que considera o contexto relacional em que se inserem.

Correlações: Psicotraumas, Transtornos Psíquicos e Emocionais e Doenças Físicas
A intrincada relação entre mente e corpo é um campo de estudo cada vez mais reconhecido, e as abordagens psicanalítica, analítica e sistêmica oferecem valiosas contribuições para compreender como psicotraumas, transtornos psíquicos e emocionais podem se manifestar em doenças físicas. A somatização, ou seja, a expressão de conflitos psíquicos no corpo, é um fenômeno amplamente estudado e observado na prática clínica.
Psicotraumas, sejam eles decorrentes de eventos únicos e intensos (como acidentes, violências) ou de experiências prolongadas e repetitivas (como negligência, abuso crônico), deixam marcas profundas na psique e no corpo. A psicanálise freudiana, ao explorar o recalcamento de memórias traumáticas e seus efeitos no inconsciente, nos ajuda a entender como esses eventos não elaborados podem gerar sintomas diversos, desde fobias e ataques de pânico até dores crônicas e doenças autoimunes. O corpo, nesse sentido, torna-se o palco onde o drama psíquico não resolvido é encenado.
A psicologia analítica, com seu foco nos complexos e na sombra, também oferece uma perspectiva rica sobre os psicotraumas. Um trauma pode ativar complexos inconscientes, gerando padrões de comportamento e reações emocionais disfuncionais. A não integração desses conteúdos sombrios pode levar a um desequilíbrio psíquico que, por sua vez, afeta o bem-estar físico. A busca pela individuação, processo central na psicologia junguiana, envolve a confrontação e a integração desses aspectos fragmentados da psique, o que pode ter um impacto profundo na saúde integral do indivíduo.
A terapia sistêmica familiar, ao considerar o trauma não apenas como um evento individual, mas como um fenômeno que afeta todo o sistema familiar, revela como os padrões de comunicação e as lealdades invisíveis podem perpetuar o sofrimento. Um trauma vivido por um membro da família pode reverberar por gerações, manifestando-se em sintomas físicos ou emocionais em outros membros. A compreensão dessas dinâmicas transgeracionais é crucial para a intervenção terapêutica, visando a quebra de ciclos disfuncionais e a promoção de um ambiente familiar mais saudável.
Estatísticas recentes corroboram essa correlação. Pessoas com condições graves de saúde mental morrem em média 10 a 20 anos mais cedo do que a população em geral, principalmente devido a doenças físicas [6]. Além disso, transtornos mentais estão entre as maiores causas de afastamento do trabalho, com episódios depressivos gerando milhares de auxílios-doença anualmente [7]. A prevalência de transtornos mentais, como a depressão, é alta, e indivíduos com esses transtornos frequentemente apresentam outras dificuldades físicas e mentais [8, 9].

Um Convite à Jornada Interior
Querido leitor, ao finalizarmos esta jornada pelas profundezas da psicanálise, da psicologia analítica e da terapia sistêmica familiar, espero que você tenha percebido a inestimável riqueza que esses saberes oferecem para a compreensão da nossa existência. Em um mundo que muitas vezes nos convida à dispersão e à superficialidade, o convite é para um mergulho corajoso em nosso próprio ser. A dor, a angústia, os transtornos que nos afligem não são meros caprichos do destino, mas sim convites para olhar para dentro, para desvendar os mistérios do nosso inconsciente, para curar as feridas do passado e para construir relações mais autênticas e significativas.
Que este artigo seja um farol, iluminando caminhos para o autoconhecimento e para a busca de auxílio profissional quando necessário. Lembre-se que a saúde mental é um pilar fundamental para uma vida plena e feliz. Se você se sentiu tocado por estas palavras, se reconheceu em alguma das descrições, saiba que não está sozinho. Há um universo de possibilidades terapêuticas à sua espera, prontas para acolher suas dores e potencializar suas forças. Permita-se essa jornada de transformação, pois o maior investimento que podemos fazer é em nós mesmos.
Para aprofundar-se ainda mais, sugiro a leitura do livro 'O Homem e Seus Símbolos' de Carl Gustav Jung, uma obra que desvenda os mistérios do inconsciente coletivo e dos arquétipos, e o filme 'Um Método Perigoso' (A Dangerous Method), que retrata a complexa relação entre Freud, Jung e Sabina Spielrein, explorando os primórdios da psicanálise e da psicologia analítica.
Com carinho, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casais, sistêmicas e familiares.
Possui formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicanálise, Doenças Psicossomáticas, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
Contato:
Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta
WhatsApp: (12) 98182-2495
Referências Bibliográficas
[1] Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1996). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
[2] IPq. (2024, 15 de abril). Saúde mental no Brasil: dados e panorama. Disponível em: https://ipqhc.org.br/2024/04/15/saude-mental-no-brasil-dados-e-panorama/
[3] G1. (2025, 10 de março). Crise de saúde mental: Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos. Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/03/10/crise-de-saude-mental-brasil-tem-maior-numero-de-afastamentos-por-ansiedade-e-depressao-em-10-anos.ghtml
[4] Brasil.un.org. (2025, 17 de abril). Brasil: Afastamentos por problemas de saúde mental aumentam 134%. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/292926-brasil-afastamentos-por-problemas-de-sa%C3%BAde-mental-aumentam-134
[5] Grupoko. (2025, 21 de janeiro). IMPACTOS DA SAÚDE MENTAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E ESTRATÉGIAS DE PROMOÇÃO DO BEM-ESTAR. Disponível em: https://grupokovalent.com.br/2025/01/21/impactos-da-saude-mental-na-sociedade-contemporanea-e-estrategias-de-promocao-do-bem-estar/
6] BVSMS. (s.d.). OMS divulga Informe Mundial de Saúde Mental: transformar a saúde mental para todos. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/oms-divulga-informe-mundial-de-saude-mental-transformar-a-saude-mental-para-todos/
[7] ANAMT. (2019, 22 de abril). Transtornos mentais estão entre as maiores causas de afastamento do trabalho. Disponível em: https://www.anamt.org.br/portal/2019/04/22/transtornos-mentais-estao-entre-as-maiores-causas-de-afastamento-do-trabalho/
[8] SciELO. (s.d.). Prevalência de transtornos mentais e fatores associados em usuários de serviços de atenção primária à saúde. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/3JZBTFqyqxbjj6TwxhJ5nSp/
[9] SciELO. (s.d.). A influência do afastamento por acidente de trabalho sobre a ocorrência de transtornos psíquicos e somáticos. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/qKPv8htCTMhNWv9FM5rgfHB/?lang=pt





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