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O Corpo no Trauma: Somatização e Liberação Somática - Um Diálogo com a Alma

Por: Silvia Rocha


Em um mundo cada vez mais conectado, mas paradoxalmente isolado, a compreensão de como nossas experiências, especialmente as traumáticas, se inscrevem em nosso corpo torna-se fundamental. A sociedade contemporânea, marcada por ritmos acelerados, pressões constantes e uma enxurrada de informações, muitas vezes nos distancia da escuta atenta aos sinais que nosso próprio organismo emite. É nesse cenário que o estudo do trauma e suas manifestações somáticas ganha relevância, revelando uma verdade profunda: o corpo não esquece. Ele guarda, processa e, por vezes, expressa o que a mente tenta silenciar.



    A sociedade contemporânea, marcada por ritmos acelerados, pressões constantes e uma enxurrada de informações, muitas vezes nos distancia da escuta atenta aos sinais que nosso próprio organismo emite.
A sociedade contemporânea, marcada por ritmos acelerados, pressões constantes e uma enxurrada de informações, muitas vezes nos distancia da escuta atenta aos sinais que nosso próprio organismo emite.

Autores de referência como Peter A. Levine, criador da Somatic Experiencing (Experiência Somática), e Bessel van der Kolk, com sua obra seminal "O Corpo Guarda as Marcas" (The Body Keeps the Score), revolucionaram nossa compreensão sobre o trauma. Levine, com sua abordagem neurobiológica, demonstra como o trauma não é apenas um evento psicológico, mas uma disfunção no sistema nervoso que impede a descarga natural da energia de sobrevivência. Ele nos convida a observar o reino animal, onde a descarga de energia após um evento ameaçador é um processo inato, algo que a racionalidade humana muitas vezes inibe, levando à retenção de respostas fisiológicas no corpo [1]. Van der Kolk, por sua vez, aprofunda essa perspectiva ao integrar neurociência, psicologia do desenvolvimento e pesquisa clínica, mostrando como o trauma literalmente remodela o cérebro e o corpo, comprometendo a capacidade de autorregulação e a conexão com o presente [2].

 

Vivemos em uma era de paradoxos. Enquanto a tecnologia nos oferece ferramentas para uma vida mais "fácil", a saúde mental da população global e, em especial, a brasileira, apresenta desafios crescentes. Dados recentes do Ministério da Saúde e de pesquisas indicam uma alta prevalência de transtornos mentais comuns no Brasil, com um aumento significativo de afastamentos do trabalho por ansiedade e depressão nos últimos anos [3, 4]. A somatização, ou seja, a manifestação de sofrimento emocional através de sintomas físicos sem causa orgânica aparente, é uma realidade cada vez mais presente, refletindo a dificuldade de processar e expressar emoções de forma saudável [5].

 

Este artigo propõe uma jornada de compreensão sobre como o trauma se manifesta no corpo, explorando a somatização como um grito silencioso e a liberação somática como um caminho para a cura. Faremos analogias com o comportamento social atual, buscando dados estatísticos que corroborem a urgência de uma abordagem mais integrada da saúde.


Entendendo o Trauma e a Somatização: O Grito Silencioso do Corpo

O trauma, em sua essência, é uma experiência avassaladora que excede a capacidade do indivíduo de processar e integrar as emoções e sensações envolvidas. Não se trata apenas do evento em si, mas da resposta do organismo a ele. Peter Levine argumenta que o trauma ocorre quando a energia mobilizada para a autodefesa (luta, fuga ou congelamento) não é descarregada completamente, ficando "presa" no sistema nervoso. Essa energia retida pode levar a uma série de sintomas físicos e psicológicos, pois o corpo permanece em um estado de alerta crônico, como se a ameaça ainda estivesse presente [1].

 

Bessel van der Kolk complementa essa visão ao destacar que o trauma afeta profundamente a capacidade de regulação emocional, a percepção do tempo e a formação da identidade. Ele enfatiza que as memórias traumáticas não são armazenadas como narrativas coerentes, mas como fragmentos sensoriais e emocionais que podem ser reativados por gatilhos, levando a flashbacks, pesadelos e sensações corporais intensas [2]. Em uma sociedade onde a resiliência individual é frequentemente superestimada e a vulnerabilidade estigmatizada, muitas pessoas internalizam a ideia de que devem "superar" o trauma sozinhas, sem reconhecer que o corpo está em um estado de desregulação que exige intervenção especializada.


Peter Levine argumenta que o trauma ocorre quando a energia mobilizada para a autodefesa (luta, fuga ou congelamento) não é descarregada completamente, ficando "presa" no sistema nervoso.
Peter Levine argumenta que o trauma ocorre quando a energia mobilizada para a autodefesa (luta, fuga ou congelamento) não é descarregada completamente, ficando "presa" no sistema nervoso.

A somatização, por sua vez, é a linguagem do corpo quando as palavras falham. É a manifestação física de um sofrimento psíquico não elaborado. Dores crônicas, problemas gastrointestinais, fadiga inexplicável, dores de cabeça tensionais, fibromialgia e uma série de outras condições podem ter raízes emocionais profundas. No Brasil, a prevalência de transtornos mentais comuns, que frequentemente se manifestam através de sintomas somáticos, é alarmante. Pesquisas indicam que uma parcela significativa da população brasileira apresenta sintomas de ansiedade e depressão, e muitos desses indivíduos buscam auxílio médico para queixas físicas sem encontrar uma causa orgânica clara [3, 5]. A dificuldade em nomear e expressar emoções, um fenômeno conhecido como alexitimia, é frequentemente observada em pessoas que somatizam, reforçando a ideia de que o corpo se torna o palco para a expressão do que não pode ser dito ou sentido conscientemente [6].


A Relação entre Teoria e Prática: O Corpo como Porta de Entrada para a Cura

A compreensão teórica do trauma e da somatização nos leva diretamente à prática clínica, onde o corpo emerge como um elemento central no processo de cura. A abordagem somática não se limita a "falar sobre" o trauma, mas a "sentir" e "processar" as sensações corporais associadas a ele. Isso envolve uma mudança de paradigma, do foco exclusivo na cognição para a integração da experiência corporal.


Psicanálise e o Inconsciente Somático

Embora a psicanálise clássica tenha se concentrado predominantemente na linguagem e nos processos inconscientes da mente, autores como Freud já reconheciam a histeria e seus sintomas físicos como manifestações de conflitos psíquicos. Posteriormente, psicanalistas como Pierre Marty e Joyce McDougall aprofundaram o estudo da psicossomática, compreendendo a somatização como uma falha na capacidade de simbolização, onde o afeto não encontra representação psíquica e é descarregado diretamente no corpo [7]. A terapia psicanalítica, nesse contexto, busca dar voz a esse inconsciente somático, permitindo que as emoções reprimidas sejam simbolizadas e integradas, aliviando a pressão sobre o corpo. A analogia com a sociedade atual é evidente: a repressão emocional, incentivada por uma cultura que valoriza a produtividade e a superficialidade, contribui para o aumento das doenças psicossomáticas.


A abordagem somática não se limita a "falar sobre" o trauma, mas a "sentir" e "processar" as sensações corporais associadas a ele.
A abordagem somática não se limita a "falar sobre" o trauma, mas a "sentir" e "processar" as sensações corporais associadas a ele.

Christian Fléche e a Decodificação Biológica das Doenças

Christian Fléche, um dos principais expoentes da Decodificação Biológica das Doenças, propõe que cada doença ou sintoma físico é uma resposta biológica de adaptação a um choque emocional ou a um conflito não resolvido. Segundo essa abordagem, o corpo "decodifica" a emoção não expressa e a transforma em um sintoma, buscando uma solução biológica para o problema psíquico. O trauma, nesse contexto, é o evento que desencadeia o conflito, e o corpo reage de forma inteligente para tentar sobreviver àquela experiência [8]. A Decodificação Biológica oferece uma nova lente para compreender a somatização, não como uma falha do corpo, mas como uma linguagem precisa que revela a história emocional por trás da doença. Em uma sociedade que busca respostas rápidas e soluções superficiais, a Decodificação Biológica nos convida a mergulhar nas raízes emocionais dos nossos adoecimentos, promovendo uma cura mais profunda e consciente.


Terapia Sistêmica Familiar: O Trauma no Tecido Relacional

A terapia sistêmica familiar aborda o trauma não como um evento individual isolado, mas como um fenômeno que afeta todo o sistema familiar. O sintoma somático de um membro da família pode ser um reflexo de disfunções ou traumas não resolvidos no sistema. A teoria sistêmica postula que as famílias possuem padrões de interação que podem perpetuar o sofrimento, e o corpo de um indivíduo pode expressar a dor que o sistema não consegue processar [9]. A intervenção sistêmica busca identificar esses padrões, promover a comunicação e a reestruturação das relações, permitindo que o trauma seja processado coletivamente e que o indivíduo se liberte da carga somática. Em uma sociedade onde as estruturas familiares estão em constante transformação, a compreensão do trauma no contexto sistêmico é crucial para a promoção da saúde e do bem-estar de todos os seus membros.


Hipnoterapia: Acesso Direto ao Inconsciente Corporal

A hipnoterapia, especialmente a hipnose Ericksoniana, oferece uma abordagem poderosa para acessar o inconsciente e facilitar a liberação somática do trauma. Através de estados de transe terapêutico, é possível contornar as resistências conscientes e trabalhar diretamente com as memórias e sensações corporais associadas ao trauma. A hipnose permite a ressignificação de experiências passadas, a descarga de energia retida e a instalação de novos padrões de resposta no sistema nervoso [10]. A eficácia da hipnoterapia na redução de sintomas de ansiedade, dor crônica e transtornos psicossomáticos tem sido amplamente documentada, oferecendo um caminho rápido e eficaz para a liberação. A hipnoterapia, ao trabalhar com a plasticidade cerebral, permite que o indivíduo reescreva a narrativa do trauma em seu corpo e mente.


Correlações com Transtornos Psíquicos, Emocionais e Doenças Físicas

A conexão entre trauma, somatização e diversas condições de saúde é inegável. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é o exemplo mais evidente, onde o trauma se manifesta através de sintomas intrusivos, evitação, alterações negativas na cognição e humor, e hiperatividade fisiológica. No entanto, o impacto do trauma vai muito além do TEPT, contribuindo para o desenvolvimento de:

 

●       Transtornos de Ansiedade: A constante ativação do sistema nervoso simpático, decorrente do trauma não processado, pode levar a ataques de pânico, ansiedade generalizada e fobias.

●       Depressão: A sensação de desamparo, desesperança e a desconexão com o corpo podem ser sintomas de uma depressão enraizada em experiências traumáticas.

●       Transtornos Alimentares: A comida pode se tornar um mecanismo de enfrentamento para lidar com emoções difíceis ou uma forma de controle em um mundo que parece incontrolável após o trauma.

●       Transtornos Dissociativos: A dissociação é um mecanismo de defesa onde a mente se desconecta da experiência traumática, mas essa desconexão pode levar a lacunas de memória, despersonalização e desrealização.

●       Doenças Autoimunes: Pesquisas emergentes sugerem uma forte correlação entre experiências traumáticas e o desenvolvimento de doenças autoimunes, onde o sistema imunológico ataca o próprio corpo, como se estivesse em constante luta contra uma ameaça interna [11].

●       Síndrome do Intestino Irritável (SII) e Fibromialgia: Essas condições, frequentemente sem causa orgânica clara, são exemplos clássicos de somatização, onde o estresse e o trauma se manifestam como dor crônica e disfunção gastrointestinal.

●       Doenças Cardiovasculares: O estresse crônico e a inflamação sistêmica, resultantes do trauma não resolvido, podem aumentar o risco de doenças cardíacas e hipertensão.

 

Essas correlações reforçam a necessidade de uma abordagem holística que considere a interconexão entre mente, corpo e emoções. Ignorar o impacto do trauma no corpo é negligenciar uma parte fundamental do processo de cura.



A eficácia da hipnoterapia na redução de sintomas de ansiedade, dor crônica e transtornos psicossomáticos tem sido amplamente documentada, oferecendo um caminho rápido e eficaz para a liberação.
A eficácia da hipnoterapia na redução de sintomas de ansiedade, dor crônica e transtornos psicossomáticos tem sido amplamente documentada, oferecendo um caminho rápido e eficaz para a liberação.

Um Abraço para a Alma e o Corpo

Querido leitor, chegamos ao fim desta jornada de compreensão sobre o corpo no trauma, mas, na verdade, é aqui que uma nova jornada pode começar para você. Se ao longo destas palavras você sentiu um eco, um reconhecimento em seu próprio corpo ou em sua história, saiba que você não está sozinho. O trauma, em suas múltiplas faces, é uma experiência humana universal, e a somatização é a maneira sábia do nosso corpo nos alertar de que algo precisa ser olhado, acolhido e liberado.

 

Vivemos em uma sociedade que, muitas vezes, nos ensina a dissociar, a ignorar os sinais do corpo em nome da produtividade, da performance, da imagem. Mas o corpo, em sua infinita sabedoria, persiste em nos enviar mensagens, sussurros que, se ignorados, podem se tornar gritos. A dor física inexplicável, a ansiedade que paralisa, a fadiga que consome – tudo isso pode ser a voz do seu corpo pedindo para ser ouvido, para que as histórias não contadas, as emoções não sentidas, as energias não liberadas, finalmente encontrem um caminho para a cura.

 

Permita-se essa escuta. Permita-se sentir. Permita-se buscar o apoio necessário para desatar os nós que o trauma pode ter criado em seu sistema. A liberação somática não é um processo linear, nem sempre fácil, mas é profundamente transformador. É um retorno à sua essência, à sua capacidade inata de autorregulação e bem-estar. É um abraço amoroso que você dá a si mesmo, reconhecendo a coragem e a resiliência que o trouxeram até aqui.

 

E para uma experiência visual e emocionalmente impactante, assista ao filme Fragmentado, que retrata de forma sensível e realista as consequências do trauma não processado e a dificuldade de lidar com a dor emocional. Quer ir além? Convido você a ler o artigo Filme Fragmentado: Uma Jornada pela Complexidade da Mente Humana”, onde aprofundo essa reflexão e conecto os elementos do filme com os processos terapêuticos e a escuta do corpo. É uma leitura que pode abrir portas para novas compreensões e caminhos de cura.


Lembre-se, a cura é um processo contínuo, uma dança entre o passado e o presente, entre a mente e o corpo. Seja gentil consigo mesmo. Você merece a leveza e a liberdade que vêm da liberação. Se precisar de apoio ou quiser explorar mais a fundo esses caminhos, estou aqui para você.

 

Com carinho, Silvia Rocha


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master
Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casais, sistêmicas e familiares.

 





Possui formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicanálise, Doenças Psicossomáticas, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.

 

Contato: 

Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta

WhatsApp: (12) 98182-2495


Referências Bibliográficas

[1] LEVINE, Peter A. O Despertar do Tigre: A Cura do Trauma. São Paulo: Summus Editorial, 1997. 

[2] VAN DER KOLK, Bessel A. O Corpo Guarda as Marcas: Cérebro, Mente e Corpo na Superação do Trauma. Porto Alegre: Artmed, 2017. 

[3] BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Mental. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-mental. Acesso em: 21 ago. 2025. 

[4] VEJA SAÚDE. Estudo aponta traumas que levam brasileiro a ter estresse pós-traumático. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/estudo-aponta-traumas-que-levam-brasileiro-a-ter-estresse-pos-traumatico/. Acesso em: 21 ago. 2025. 

[5] CNN BRASIL. Somatização: o que é o conjunto de sintomas físicos agravado pelas emoções. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/somatizacao-o-que-e-o-conjunto-de-sintomas-fisicos-agravado-pelas-emocoes/. Acesso em: 21 ago. 2025. 

[6] LAZZARO, C. D. S.; ÁVILA, L. A. Somatização na prática médica. Arquivos de Ciência Saúde, v. 11, n. 2, p. 101-105, 2004. Disponível em: https://ahs.famerp.br/racs_ol/Vol-11-2/ac09%20-%20id%2036.pdf. Acesso em: 21 ago. 2025. 

[7] MCDOUGALL, Joyce. Teatros do Eu: O Drama Psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago, 1997. 

[8] JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964. 

[9] MINUCHIN, Salvador. Famílias e Terapia Familiar. Porto Alegre: Artmed, 1982. 

[10] ERICKSON, Milton H.; ROSSI, Ernest L. Hypnotherapy: An Exploratory Casebook. New York: Irvington Publishers, 1979. 

[11] VAN DER KOLK, Bessel A. et al. The body keeps the score: Memory and the evolving psychobiology of posttraumatic stress. Harvard Review of Psychiatry, v. 1, n. 5, p. 253-265, 1994. Disponível em: https://journals.lww.com/hrpjournal/abstract/1994/01000/the_body_keeps_the_score__memory_and_the_evolving.1.aspx. Acesso em: 21 ago. 2025. 

[12] KABAT-ZINN, Jon. Wherever You Go, There You Are: Mindfulness Meditation in Everyday Life. New York: Hyperion, 1994. 

[13] MALCHIODI, Cathy A. Handbook of Art Therapy. New York: Guilford Press, 2003.

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