Alcoolismo, A Raiz Oculta do Vício: Como Traumas na Infância e Adolescência Alimentam o Problema
- Silvia Rocha

 - 12 de set.
 - 9 min de leitura
 
O alcoolismo é uma das condições de saúde mental mais complexas e devastadoras, afetando milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, os números são alarmantes e revelam uma crise de saúde pública que se aprofunda silenciosamente. Segundo dados do Ministério da Saúde, 17,9% da população adulta faz uso abusivo de álcool, um aumento de 14,7% em relação a 2006 [1]. Mas o que se esconde por trás desses números? O que leva uma pessoa a buscar no álcool um refúgio que, invariavelmente, se transforma em uma prisão?
Embora a predisposição genética e os fatores sociais desempenhem um papel importante, uma correlação cada vez mais evidente e inegável aponta para uma raiz mais profunda e dolorosa: os traumas vividos na infância e na adolescência. O renomado médico e autor Gabor Maté, uma das maiores autoridades mundiais em dependência química, defende uma tese central e transformadora: todo vício tem origem em um trauma [2]. Para ele, a pergunta crucial não é "por que o vício?", mas sim "por que a dor?".
Este artigo se propõe a mergulhar nas profundezas dessa conexão, explorando como as feridas emocionais não cicatrizadas da juventude se manifestam na vida adulta sob a forma do alcoolismo. Abordaremos as perspectivas da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise, analisando como os diferentes tipos de abuso – físico, sexual e emocional – deixam marcas indeléveis que predispõem ao vício. Daremos um espaço especial para a discussão sobre o alcoolismo feminino, um fenômeno crescente e com particularidades que precisam ser compreendidas e tratadas com urgência. Com base em dados estatísticos atuais, estudos de caso e na análise de especialistas, buscaremos desvendar as camadas complexas que envolvem o alcoolismo, não como uma falha de caráter, mas como uma trágica tentativa de silenciar uma dor que nunca foi ouvida.

O Alcoolismo em Números: Um Retrato da Realidade Brasileira
Para compreender a magnitude do problema, é fundamental analisar os dados estatísticos que revelam o avanço do alcoolismo no Brasil. O cenário é preocupante, especialmente quando observamos o crescimento do consumo abusivo entre as mulheres. A Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2018, do Ministério da Saúde, aponta que, embora o percentual de consumo abusivo seja maior entre os homens (26%), o crescimento entre as mulheres foi exponencial: um aumento de 42,9% entre 2006 e 2018, saltando de 7,7% para 11% [1].
O Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), corrobora essa tendência e aprofunda a análise, conectando o vício à violência pregressa. Os dados são chocantes: 21,7% da população brasileira relata ter sofrido algum tipo de abuso na infância. Quando cruzamos essa informação com a dependência de álcool, a correlação se torna inegável: 45,7% dos alcoólatras sofreram abuso infantil, mais que o dobro da média da população geral [3].
Esses números são mais do que meras estatísticas; eles representam histórias de vida marcadas pela dor. Cada percentual reflete indivíduos que, em sua maioria, não encontraram o suporte necessário para processar suas experiências traumáticas e acabaram buscando no álcool uma forma de automedicação, um alívio temporário para um sofrimento constante.
As Cicatrizes Invisíveis: Abuso, Trauma e o Cérebro Adicto
A relação entre trauma e dependência química é complexa e multifacetada, envolvendo aspectos neurobiológicos, psicológicos e sociais. O trauma, especialmente quando ocorrido em fases cruciais do desenvolvimento, altera a arquitetura e o funcionamento do cérebro, criando uma vulnerabilidade significativa para o desenvolvimento de transtornos mentais, incluindo o alcoolismo.
O Impacto do Abuso no Desenvolvimento Cerebral
Estudos de neuroimagem demonstram que a exposição a traumas na infância, como abuso físico, sexual ou emocional, pode causar alterações duradouras em áreas cerebrais responsáveis pela regulação do estresse, do prazer e do controle de impulsos, como o córtex pré-frontal, a amígdala e o hipocampo. Essas alterações desregulam o sistema de recompensa do cérebro, tornando o indivíduo mais suscetível aos efeitos reforçadores do álcool e de outras drogas [4].
O abuso infantil e outros traumas são frequentemente associados à hipótese da automedicação. Indivíduos que sofreram traumas podem usar o álcool para tentar aliviar os sintomas de estresse pós-traumático (TEPT), como ansiedade, flashbacks e insônia. No entanto, essa "solução" é temporária e, a longo prazo, agrava o problema, criando um ciclo vicioso de trauma, sofrimento e dependência.
Os Diferentes Rostos do Abuso
É crucial entender que o abuso não se manifesta de uma única forma. Cada tipo de violência deixa cicatrizes específicas, mas todas convergem para um aumento do risco de alcoolismo.
● Abuso Físico: A violência física, muitas vezes normalizada sob o pretexto de "educação", gera um ambiente de medo e insegurança constantes. O estudo do Lenad revelou que 11,9% dos brasileiros relataram ter sofrido agressões que deixaram marcas na infância [3]. Essa exposição à violência física ensina ao cérebro a viver em estado de alerta, e o álcool pode ser usado como uma tentativa de "desligar" esse sistema de alarme.
● Abuso Sexual: Considerado por especialistas como o tipo de abuso com maior potencial para gerar dependência, a violência sexual na infância aumenta em até quatro vezes a chance de um indivíduo se tornar dependente químico [3]. A violação da intimidade e da confiança gera sentimentos profundos de vergonha, culpa e autoaversão, que são extremamente difíceis de processar. O álcool surge como uma forma de entorpecer esses sentimentos e dissociar-se da dor.
● Abuso Emocional e Negligência: Muitas vezes subestimado, o abuso emocional – caracterizado por humilhações, críticas constantes, rejeição e manipulação – e a negligência – a ausência de cuidado, afeto e atenção – são extremamente danosos. A criança que cresce em um ambiente de invalidação emocional aprende que seus sentimentos não importam, gerando um vazio interior e uma baixa autoestima crônica. O álcool pode ser usado para preencher esse vazio ou para criar uma falsa sensação de autoconfiança e pertencimento.
"São muitos os casos de violência e humilhação. Entre os usuários de drogas adolescentes que atendo, são comuns relatos de que ouviram de seus pais coisas do tipo ‘você é um lixo’, ‘a minha vida era muito melhor antes de você nascer’...", disse Juliana Gomes Pereira, psiquiatra [3]. Essa fala, extraída de uma reportagem sobre o estudo do Lenad, ilustra a profundidade das feridas emocionais que podem levar um jovem a buscar refúgio nas drogas e no álcool. A dor da rejeição e da humilhação é tão real e concreta quanto a dor física, e suas consequências podem ser igualmente devastadoras.

O Grito Silenciado: As Particularidades do Alcoolismo Feminino
O alcoolismo não é uma doença com uma única face, e as diferenças de gênero desempenham um papel crucial em sua manifestação, progressão e consequências. Nos últimos anos, temos observado um aumento preocupante no consumo de álcool entre as mulheres, um fenômeno que exige um olhar atento e específico. O estereótipo do alcoólatra como uma figura predominantemente masculina não apenas invisibiliza o sofrimento de milhões de mulheres, mas também ignora as particularidades biológicas, psicológicas e sociais que tornam o alcoolismo feminino uma condição com contornos próprios e, muitas vezes, mais severos.
Um Corpo, Uma Sentença Diferente
Biologicamente, o corpo feminino processa o álcool de forma diferente do masculino. As mulheres geralmente possuem menor quantidade de água corporal e uma menor concentração da enzima desidrogenase alcoólica no estômago, responsável por metabolizar o álcool. Isso significa que, mesmo ingerindo a mesma quantidade de bebida, as mulheres atingem níveis de alcoolemia mais elevados e se intoxicam mais rapidamente [5].
Essa diferença metabólica acelera a progressão da dependência e potencializa os danos à saúde. Mulheres alcoolistas desenvolvem doenças hepáticas, como a cirrose, em um ritmo mais rápido e com um consumo menor de álcool em comparação aos homens. O risco de desenvolver câncer de mama, doenças cardiovasculares e osteoporose também é significativamente maior [5].
A Dupla Carga: Trauma e Gênero
Se o trauma é um fator de risco central para o alcoolismo em geral, no universo feminino essa conexão é ainda mais forte e complexa. O estudo do Lenad revelou um dado alarmante: 56,5% das mulheres alcoolistas relataram ter sofrido algum tipo de violência na juventude, em comparação com 42,1% dos homens alcoólicos [3].
Mulheres são desproporcionalmente mais vítimas de abuso sexual na infância e de violência doméstica na vida adulta, traumas que deixam cicatrizes profundas e aumentam drasticamente a vulnerabilidade ao alcoolismo. A sociedade, muitas vezes, impõe à mulher um papel de cuidadora e um ideal de perfeição, o que pode gerar uma pressão esmagadora. O álcool, nesse contexto, pode surgir como uma válvula de escape, uma forma de anestesiar a dor de traumas passados e de lidar com as pressões do presente.
Além disso, o alcoolismo feminino está frequentemente associado a outras comorbidades psiquiátricas, como depressão e transtornos de ansiedade. Estima-se que entre 30% e 40% das mulheres que abusam do álcool apresentam depressão [5]. Muitas vezes, a bebida é utilizada como uma tentativa de automedicar os sintomas depressivos, criando um ciclo perigoso e de difícil rompimento.
O Estigma e a Solidão
O estigma social em relação à mulher alcoolista ainda é um grande obstáculo para o pedido de ajuda e o tratamento. Enquanto o homem que bebe excessivamente é muitas vezes visto como "sociável" ou "boêmio", a mulher na mesma situação é frequentemente julgada como "sem moral", "descontrolada" ou uma "mãe ruim". Esse julgamento social contribui para o isolamento e a vergonha, fazendo com que muitas mulheres bebam escondidas e demorem mais tempo para admitir a dependência e procurar ajuda.
É fundamental desconstruir esses estigmas e criar um ambiente de acolhimento e compreensão, onde as mulheres se sintam seguras para compartilhar suas dores e buscar o tratamento adequado. Entender as particularidades do alcoolismo feminino não é uma forma de segregação, mas sim um passo essencial para oferecer um cuidado mais eficaz e humano.

Um Caminho de Volta para Si: A Jornada da Cura
A dor do passado pode ecoar no presente de muitas formas, e para algumas pessoas, o álcool surge como uma tentativa de silenciar essas memórias. A jornada para superar o alcoolismo, especialmente quando ligado a traumas, é desafiadora, mas está longe de ser uma sentença. O primeiro e mais corajoso passo nesse processo é o reconhecimento da dor e da necessidade de buscar apoio. A verdadeira cura não reside em apagar o passado, mas em ressignificá-lo, aprendendo a acolher com compaixão e cuidado as feridas que ainda necessitam de atenção.
Nesse percurso, a ajuda profissional é um pilar fundamental. A psicoterapia oferece um espaço seguro para explorar as raízes do sofrimento, desenvolver novas estratégias de enfrentamento e reconstruir a autoestima. Abordagens focadas em trauma, como o EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento por meio dos Movimentos Oculares), têm se mostrado eficazes no tratamento de estresse pós-traumático e, por consequência, na redução da dependência. Além disso, grupos de apoio como os Alcoólicos Anônimos (A.A.) proporcionam uma rede de suporte e identificação que pode ser transformadora.
É importante ressaltar que os tratamentos e as orientações da medicina tradicional devem ser sempre seguidos. As terapias integrativas, por sua vez, podem atuar como um valioso complemento nessa jornada de bem-estar. Práticas como meditação, yoga e acupuntura ajudam a regular o sistema nervoso, aliviar a ansiedade e reconectar o indivíduo com seu corpo de uma maneira mais saudável e consciente.
Para aprofundar a reflexão sobre o tema da dependência química, o cinema oferece perspectivas sensíveis e esclarecedoras. O filme 28 Dias (2000), estrelado por Sandra Bullock, retrata de forma realista os desafios enfrentados durante o tratamento em uma clínica de reabilitação, evidenciando a importância do autoconhecimento e do apoio mútuo na jornada rumo a uma vida mais plena. Se você deseja explorar essa abordagem com mais profundidade, convido você a ler a análise completa no artigo “Filme 28 Dias: Análise Multidisciplinar do Alcoolismo e da Dependência Química".
A jornada de recuperação é feita de coragem e carinho consigo mesmo. Ainda que recaídas possam acontecer, cada passo adiante é uma celebração da força interior que resiste e floresce. A sobriedade não é apenas a ausência do álcool — é o reencontro com a própria essência, a chance de se abraçar com ternura e escrever um novo capítulo onde o passado já não comanda o presente, mas apenas ensina com delicadeza.
Com carinho, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
Contato:
Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta
WhatsApp: (12) 98182-2495
Referências Bibliográficas
[1] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Vigitel Brasil 2018: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2019/julho/consumo-abusivo-de-alcool-aumenta-42-9-entre-as-mulheres. Acesso em: 11 set. 2025.
[2] MATÉ, Gabor. Vícios têm origem em traumas e não estamos atacando as causas do problema. Entrevista concedida a Olivia Lang. BBC World Service, 18 nov. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50459101. Acesso em: 11 set. 2025.
[3] ROXO, Sérgio. Vítimas de violência na infância se viciam mais em drogas e álcool. O Globo, 8 maio 2014. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/vitimas-de-violencia-na-infancia-se-viciam-mais-em-drogas-alcool-12415988. Acesso em: 11 set. 2025.
[4] TRENTO, Maria Eduarda; SAUSEN, Tiago Rafael. Traumas psicológicos e o abuso de álcool: um estudo de caso. Revista FT, v. 27, n. 128, nov. 2023. Disponível em: https://revistaft.com.br/traumas-psicologicos-e-o-abuso-de-alcool-um-estudo-de-caso/. Acesso em: 11 set. 2025.
[5] HOSPITAL SANTA MÔNICA. Alcoolismo feminino: entenda mais sobre o assunto. Hospital Santa Mônica, 1 mar. 2023. Disponível em: https://hospitalsantamonica.com.br/alcoolismo-feminino-entenda-mais-sobre-o-assunto/. Acesso em: 11 set. 2025.



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