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Alcoolismo, A Raiz Oculta do Vício: Como Traumas na Infância e Adolescência Alimentam o Problema

O alcoolismo é uma das condições de saúde mental mais complexas e devastadoras, afetando milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, os números são alarmantes e revelam uma crise de saúde pública que se aprofunda silenciosamente. Segundo dados do Ministério da Saúde, 17,9% da população adulta faz uso abusivo de álcool, um aumento de 14,7% em relação a 2006 [1]. Mas o que se esconde por trás desses números? O que leva uma pessoa a buscar no álcool um refúgio que, invariavelmente, se transforma em uma prisão?

 

Embora a predisposição genética e os fatores sociais desempenhem um papel importante, uma correlação cada vez mais evidente e inegável aponta para uma raiz mais profunda e dolorosa: os traumas vividos na infância e na adolescência. O renomado médico e autor Gabor Maté, uma das maiores autoridades mundiais em dependência química, defende uma tese central e transformadora: todo vício tem origem em um trauma [2]. Para ele, a pergunta crucial não é "por que o vício?", mas sim "por que a dor?".

 

Este artigo se propõe a mergulhar nas profundezas dessa conexão, explorando como as feridas emocionais não cicatrizadas da juventude se manifestam na vida adulta sob a forma do alcoolismo. Abordaremos as perspectivas da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise, analisando como os diferentes tipos de abuso – físico, sexual e emocional – deixam marcas indeléveis que predispõem ao vício. Daremos um espaço especial para a discussão sobre o alcoolismo feminino, um fenômeno crescente e com particularidades que precisam ser compreendidas e tratadas com urgência. Com base em dados estatísticos atuais, estudos de caso e na análise de especialistas, buscaremos desvendar as camadas complexas que envolvem o alcoolismo, não como uma falha de caráter, mas como uma trágica tentativa de silenciar uma dor que nunca foi ouvida.


imagem que representa a solidão e o refúgio no álcool, uma mulher sentada sozinha em um ambiente escuro com um copo na mão.
 Nos últimos anos, temos observado um aumento preocupante no consumo de álcool entre as mulheres, um fenômeno que exige um olhar atento e específico.

O Alcoolismo em Números: Um Retrato da Realidade Brasileira

Para compreender a magnitude do problema, é fundamental analisar os dados estatísticos que revelam o avanço do alcoolismo no Brasil. O cenário é preocupante, especialmente quando observamos o crescimento do consumo abusivo entre as mulheres. A Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2018, do Ministério da Saúde, aponta que, embora o percentual de consumo abusivo seja maior entre os homens (26%), o crescimento entre as mulheres foi exponencial: um aumento de 42,9% entre 2006 e 2018, saltando de 7,7% para 11% [1].

 

O Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), corrobora essa tendência e aprofunda a análise, conectando o vício à violência pregressa. Os dados são chocantes: 21,7% da população brasileira relata ter sofrido algum tipo de abuso na infância. Quando cruzamos essa informação com a dependência de álcool, a correlação se torna inegável: 45,7% dos alcoólatras sofreram abuso infantil, mais que o dobro da média da população geral [3].

 

Esses números são mais do que meras estatísticas; eles representam histórias de vida marcadas pela dor. Cada percentual reflete indivíduos que, em sua maioria, não encontraram o suporte necessário para processar suas experiências traumáticas e acabaram buscando no álcool uma forma de automedicação, um alívio temporário para um sofrimento constante.

 

As Cicatrizes Invisíveis: Abuso, Trauma e o Cérebro Adicto

A relação entre trauma e dependência química é complexa e multifacetada, envolvendo aspectos neurobiológicos, psicológicos e sociais. O trauma, especialmente quando ocorrido em fases cruciais do desenvolvimento, altera a arquitetura e o funcionamento do cérebro, criando uma vulnerabilidade significativa para o desenvolvimento de transtornos mentais, incluindo o alcoolismo.


O Impacto do Abuso no Desenvolvimento Cerebral

Estudos de neuroimagem demonstram que a exposição a traumas na infância, como abuso físico, sexual ou emocional, pode causar alterações duradouras em áreas cerebrais responsáveis pela regulação do estresse, do prazer e do controle de impulsos, como o córtex pré-frontal, a amígdala e o hipocampo. Essas alterações desregulam o sistema de recompensa do cérebro, tornando o indivíduo mais suscetível aos efeitos reforçadores do álcool e de outras drogas [4].

 

O abuso infantil e outros traumas são frequentemente associados à hipótese da automedicação. Indivíduos que sofreram traumas podem usar o álcool para tentar aliviar os sintomas de estresse pós-traumático (TEPT), como ansiedade, flashbacks e insônia. No entanto, essa "solução" é temporária e, a longo prazo, agrava o problema, criando um ciclo vicioso de trauma, sofrimento e dependência.


Os Diferentes Rostos do Abuso

É crucial entender que o abuso não se manifesta de uma única forma. Cada tipo de violência deixa cicatrizes específicas, mas todas convergem para um aumento do risco de alcoolismo.

 

●       Abuso Físico: A violência física, muitas vezes normalizada sob o pretexto de "educação", gera um ambiente de medo e insegurança constantes. O estudo do Lenad revelou que 11,9% dos brasileiros relataram ter sofrido agressões que deixaram marcas na infância [3]. Essa exposição à violência física ensina ao cérebro a viver em estado de alerta, e o álcool pode ser usado como uma tentativa de "desligar" esse sistema de alarme.

 

●       Abuso Sexual: Considerado por especialistas como o tipo de abuso com maior potencial para gerar dependência, a violência sexual na infância aumenta em até quatro vezes a chance de um indivíduo se tornar dependente químico [3]. A violação da intimidade e da confiança gera sentimentos profundos de vergonha, culpa e autoaversão, que são extremamente difíceis de processar. O álcool surge como uma forma de entorpecer esses sentimentos e dissociar-se da dor.

 

●       Abuso Emocional e Negligência: Muitas vezes subestimado, o abuso emocional – caracterizado por humilhações, críticas constantes, rejeição e manipulação – e a negligência – a ausência de cuidado, afeto e atenção – são extremamente danosos. A criança que cresce em um ambiente de invalidação emocional aprende que seus sentimentos não importam, gerando um vazio interior e uma baixa autoestima crônica. O álcool pode ser usado para preencher esse vazio ou para criar uma falsa sensação de autoconfiança e pertencimento.

 

"São muitos os casos de violência e humilhação. Entre os usuários de drogas adolescentes que atendo, são comuns relatos de que ouviram de seus pais coisas do tipo ‘você é um lixo’, ‘a minha vida era muito melhor antes de você nascer’...", disse Juliana Gomes Pereira, psiquiatra [3]. Essa fala, extraída de uma reportagem sobre o estudo do Lenad, ilustra a profundidade das feridas emocionais que podem levar um jovem a buscar refúgio nas drogas e no álcool. A dor da rejeição e da humilhação é tão real e concreta quanto a dor física, e suas consequências podem ser igualmente devastadoras.


imagem que represente a dualidade do álcool como fuga e prisão, uma mulher refletida em um copo, com uma expressão de angústia.
Muitas vezes, a bebida é utilizada como uma tentativa de automedicar os sintomas depressivos, criando um ciclo perigoso e de difícil rompimento.

O Grito Silenciado: As Particularidades do Alcoolismo Feminino

O alcoolismo não é uma doença com uma única face, e as diferenças de gênero desempenham um papel crucial em sua manifestação, progressão e consequências. Nos últimos anos, temos observado um aumento preocupante no consumo de álcool entre as mulheres, um fenômeno que exige um olhar atento e específico. O estereótipo do alcoólatra como uma figura predominantemente masculina não apenas invisibiliza o sofrimento de milhões de mulheres, mas também ignora as particularidades biológicas, psicológicas e sociais que tornam o alcoolismo feminino uma condição com contornos próprios e, muitas vezes, mais severos.


Um Corpo, Uma Sentença Diferente

Biologicamente, o corpo feminino processa o álcool de forma diferente do masculino. As mulheres geralmente possuem menor quantidade de água corporal e uma menor concentração da enzima desidrogenase alcoólica no estômago, responsável por metabolizar o álcool. Isso significa que, mesmo ingerindo a mesma quantidade de bebida, as mulheres atingem níveis de alcoolemia mais elevados e se intoxicam mais rapidamente [5].

 

Essa diferença metabólica acelera a progressão da dependência e potencializa os danos à saúde. Mulheres alcoolistas desenvolvem doenças hepáticas, como a cirrose, em um ritmo mais rápido e com um consumo menor de álcool em comparação aos homens. O risco de desenvolver câncer de mama, doenças cardiovasculares e osteoporose também é significativamente maior [5].


A Dupla Carga: Trauma e Gênero

Se o trauma é um fator de risco central para o alcoolismo em geral, no universo feminino essa conexão é ainda mais forte e complexa. O estudo do Lenad revelou um dado alarmante: 56,5% das mulheres alcoolistas relataram ter sofrido algum tipo de violência na juventude, em comparação com 42,1% dos homens alcoólicos [3].

 

Mulheres são desproporcionalmente mais vítimas de abuso sexual na infância e de violência doméstica na vida adulta, traumas que deixam cicatrizes profundas e aumentam drasticamente a vulnerabilidade ao alcoolismo. A sociedade, muitas vezes, impõe à mulher um papel de cuidadora e um ideal de perfeição, o que pode gerar uma pressão esmagadora. O álcool, nesse contexto, pode surgir como uma válvula de escape, uma forma de anestesiar a dor de traumas passados e de lidar com as pressões do presente.

 

Além disso, o alcoolismo feminino está frequentemente associado a outras comorbidades psiquiátricas, como depressão e transtornos de ansiedade. Estima-se que entre 30% e 40% das mulheres que abusam do álcool apresentam depressão [5]. Muitas vezes, a bebida é utilizada como uma tentativa de automedicar os sintomas depressivos, criando um ciclo perigoso e de difícil rompimento.


O Estigma e a Solidão

O estigma social em relação à mulher alcoolista ainda é um grande obstáculo para o pedido de ajuda e o tratamento. Enquanto o homem que bebe excessivamente é muitas vezes visto como "sociável" ou "boêmio", a mulher na mesma situação é frequentemente julgada como "sem moral", "descontrolada" ou uma "mãe ruim". Esse julgamento social contribui para o isolamento e a vergonha, fazendo com que muitas mulheres bebam escondidas e demorem mais tempo para admitir a dependência e procurar ajuda.

 

É fundamental desconstruir esses estigmas e criar um ambiente de acolhimento e compreensão, onde as mulheres se sintam seguras para compartilhar suas dores e buscar o tratamento adequado. Entender as particularidades do alcoolismo feminino não é uma forma de segregação, mas sim um passo essencial para oferecer um cuidado mais eficaz e humano.


imagem que representa esperança e recuperação, como mãos que se ajudam ou uma pessoa caminhando em direção à luz.

Um Caminho de Volta para Si: A Jornada da Cura

A dor do passado pode ecoar no presente de muitas formas, e para algumas pessoas, o álcool surge como uma tentativa de silenciar essas memórias. A jornada para superar o alcoolismo, especialmente quando ligado a traumas, é desafiadora, mas está longe de ser uma sentença. O primeiro e mais corajoso passo nesse processo é o reconhecimento da dor e da necessidade de buscar apoio. A verdadeira cura não reside em apagar o passado, mas em ressignificá-lo, aprendendo a acolher com compaixão e cuidado as feridas que ainda necessitam de atenção.


Nesse percurso, a ajuda profissional é um pilar fundamental. A psicoterapia oferece um espaço seguro para explorar as raízes do sofrimento, desenvolver novas estratégias de enfrentamento e reconstruir a autoestima. Abordagens focadas em trauma, como o EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento por meio dos Movimentos Oculares), têm se mostrado eficazes no tratamento de estresse pós-traumático e, por consequência, na redução da dependência. Além disso, grupos de apoio como os Alcoólicos Anônimos (A.A.) proporcionam uma rede de suporte e identificação que pode ser transformadora.


É importante ressaltar que os tratamentos e as orientações da medicina tradicional devem ser sempre seguidos. As terapias integrativas, por sua vez, podem atuar como um valioso complemento nessa jornada de bem-estar. Práticas como meditação, yoga e acupuntura ajudam a regular o sistema nervoso, aliviar a ansiedade e reconectar o indivíduo com seu corpo de uma maneira mais saudável e consciente.


Para aprofundar a reflexão sobre o tema da dependência química, o cinema oferece perspectivas sensíveis e esclarecedoras. O filme 28 Dias (2000), estrelado por Sandra Bullock, retrata de forma realista os desafios enfrentados durante o tratamento em uma clínica de reabilitação, evidenciando a importância do autoconhecimento e do apoio mútuo na jornada rumo a uma vida mais plena. Se você deseja explorar essa abordagem com mais profundidade, convido você a ler a análise completa no artigo Filme 28 Dias: Análise Multidisciplinar do Alcoolismo e da Dependência Química".


A jornada de recuperação é feita de coragem e carinho consigo mesmo. Ainda que recaídas possam acontecer, cada passo adiante é uma celebração da força interior que resiste e floresce. A sobriedade não é apenas a ausência do álcool — é o reencontro com a própria essência, a chance de se abraçar com ternura e escrever um novo capítulo onde o passado já não comanda o presente, mas apenas ensina com delicadeza.


Com carinho, Silvia Rocha


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master
Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master.


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.

 






Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.

 

Contato:

Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta

WhatsApp: (12) 98182-2495

 

Referências Bibliográficas

[1] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Vigitel Brasil 2018: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2019/julho/consumo-abusivo-de-alcool-aumenta-42-9-entre-as-mulheres. Acesso em: 11 set. 2025. 

[2] MATÉ, Gabor. Vícios têm origem em traumas e não estamos atacando as causas do problema. Entrevista concedida a Olivia Lang. BBC World Service, 18 nov. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50459101. Acesso em: 11 set. 2025. 

[3] ROXO, Sérgio. Vítimas de violência na infância se viciam mais em drogas e álcool. O Globo, 8 maio 2014. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/vitimas-de-violencia-na-infancia-se-viciam-mais-em-drogas-alcool-12415988. Acesso em: 11 set. 2025. 

[4] TRENTO, Maria Eduarda; SAUSEN, Tiago Rafael. Traumas psicológicos e o abuso de álcool: um estudo de caso. Revista FT, v. 27, n. 128, nov. 2023. Disponível em: https://revistaft.com.br/traumas-psicologicos-e-o-abuso-de-alcool-um-estudo-de-caso/. Acesso em: 11 set. 2025. 

[5] HOSPITAL SANTA MÔNICA. Alcoolismo feminino: entenda mais sobre o assunto. Hospital Santa Mônica, 1 mar. 2023. Disponível em: https://hospitalsantamonica.com.br/alcoolismo-feminino-entenda-mais-sobre-o-assunto/. Acesso em: 11 set. 2025.

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