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Filme "28 Dias": Análise Multidisciplinar do Alcoolismo e da Dependência Química

Atualizado: 21 de out.

Por: Silvia Rocha


O cinema, em sua capacidade de espelhar a complexidade da condição humana, frequentemente nos presenteia com narrativas que transcendem o entretenimento, convidando-nos a uma reflexão profunda sobre temas universais. O filme "28 Dias" (2000), estrelado por Sandra Bullock, é um desses exemplos notáveis. A obra retrata a jornada de Gwen Cummings, uma escritora bem-sucedida que, após uma série de eventos desastrosos impulsionados pelo álcool e outras drogas, é forçada a passar 28 dias em uma clínica de reabilitação. Mais do que um simples drama sobre vício, o filme oferece um olhar sensível e, por vezes, cru, sobre o processo de negação, aceitação e a árdua busca pela sobriedade. A relevância da obra permanece intacta, especialmente quando observamos o cenário contemporâneo da dependência química. No Brasil, os números são alarmantes. Segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mais de 3,5 milhões de brasileiros são considerados dependentes químicos, com a dependência de álcool afetando cerca de 11,7 milhões de pessoas [7]. Esses dados, que refletem um grave problema de saúde pública, nos convocam a um entendimento mais profundo sobre as múltiplas facetas da dependência. Este artigo propõe uma análise multidisciplinar do filme "28 Dias", utilizando as lentes da psicanálise, da neurobiologia e da terapia sistêmica para desvendar as camadas psicológicas da jornada de Gwen, traçando paralelos com a realidade atual e explorando os caminhos possíveis para a transformação e a cura.

 


Mais do que um simples drama sobre vício, o filme 28 Dias oferece um olhar sensível e, por vezes, cru, sobre o processo de negação, aceitação e a árdua busca pela sobriedade.
Mais do que um simples drama sobre vício, o filme 28 Dias oferece um olhar sensível e, por vezes, cru, sobre o processo de negação, aceitação e a árdua busca pela sobriedade.

O Retrato do Alcoolismo e da Dependência Química no Cinema

A personagem Gwen Cummings, interpretada com maestria por Sandra Bullock, personifica a figura do dependente químico funcional, um indivíduo que, apesar do vício, consegue manter uma aparência de normalidade em sua vida profissional e social. No entanto, essa fachada desmorona rapidamente, revelando a progressiva perda de controle e os comportamentos autodestrutivos que caracterizam a dependência. A negação, um dos mecanismos de defesa mais proeminentes no início do tratamento, é retratada de forma contundente. Gwen inicialmente resiste à ideia de que tem um problema, minimizando o impacto de suas ações e culpando fatores externos por seus infortúnios. Essa resistência é um reflexo da dificuldade em confrontar a dor emocional subjacente que alimenta o vício. Sigmund Freud, em suas investigações sobre o psiquismo humano, já apontava que o uso de substâncias tóxicas pode ser visto como uma tentativa de evitar o sofrimento, uma "fuga" química de uma realidade interna insuportável [1]. A jornada de Gwen no filme ilustra vividamente essa teoria, mostrando como o álcool e as drogas serviam como um anestésico para traumas não resolvidos e uma profunda sensação de inadequação. Aos poucos, através das interações com outros pacientes e da rotina terapêutica, a armadura da negação começa a ceder, dando lugar a um doloroso, porém necessário, processo de autoconfrontação.

 

Perspectivas Psicológicas da Dependência

A psicanálise oferece uma compreensão profunda das raízes do vício, indo além da superfície do comportamento. Freud, em seu "Projeto para uma Psicologia Científica", já explorava as bases neurológicas do prazer e do desprazer, que mais tarde seriam fundamentais para entender a busca incessante por satisfação na dependência [2].


Jacques Lacan, por sua vez, aprofundou a análise da toxicomania, associando-a a uma tentativa de preencher um vazio existencial e a uma forma de gozo que se situa para além do princípio do prazer, um gozo mortífero que aprisiona o sujeito [3]. Nessa perspectiva, a droga se torna um objeto que promete uma completude impossível, levando a um ciclo de repetição e autodestruição, ecoando a noção freudiana de "pulsão de morte". A história de Gwen no filme pode ser lida sob essa ótica, onde o uso de substâncias parece ser uma tentativa desesperada de lidar com traumas de infância e uma estrutura familiar disfuncional, temas que emergem ao longo de sua terapia.

 

Neurobiologia do Vício

A compreensão da dependência química foi revolucionada pelos avanços da neurociência. Hoje, sabemos que o vício é uma doença cerebral crônica, caracterizada por alterações significativas nos circuitos neurais. O chamado "sistema de recompensa", uma rede de estruturas cerebrais que inclui a área tegmental ventral (ATV) e o núcleo accumbens, é central nesse processo [4]. Esse sistema é responsável pela sensação de prazer e pela motivação para buscar estímulos que são essenciais para a sobrevivência, como comida e sexo. A dopamina é o principal neurotransmissor envolvido nesse circuito [5]. As drogas de abuso sequestram esse sistema, provocando uma liberação massiva de dopamina, muito superior àquela gerada por recompensas naturais. Com o uso contínuo, o cérebro se adapta a esses níveis elevados de dopamina, desenvolvendo tolerância e diminuindo a sensibilidade dos receptores. Isso leva o indivíduo a precisar de doses cada vez maiores da substância para obter o mesmo efeito e a sentir uma profunda anedonia (incapacidade de sentir prazer) na ausência da droga. O filme "28 Dias" ilustra, de forma metafórica, as consequências dessas alterações neurobiológicas: a compulsão incontrolável de Gwen, sua dificuldade em sentir prazer com atividades cotidianas e a intensa fissura que experimenta durante a abstinência.


A compreensão da dependência química foi revolucionada pelos avanços da neurociência. Hoje, sabemos que o vício é uma doença cerebral crônica, caracterizada por alterações significativas nos circuitos neurais.
A compreensão da dependência química foi revolucionada pelos avanços da neurociência. Hoje, sabemos que o vício é uma doença cerebral crônica, caracterizada por alterações significativas nos circuitos neurais.

Terapia Sistêmica Familiar

A dependência química não é um fenômeno isolado; ela reverbera por todo o sistema familiar. A terapia sistêmica familiar compreende o vício como um sintoma que, muitas vezes, serve para manter a homeostase (o equilíbrio, ainda que disfuncional) da família [6]. O comportamento do dependente pode desviar a atenção de outros conflitos familiares latentes, e os papéis dos membros da família frequentemente se reorganizam em torno do vício (o codependente, o herói, o bode expiatório, etc.).


No filme, a relação de Gwen com sua irmã Lily é um exemplo claro dessa dinâmica. A visita de Lily à clínica de reabilitação expõe as feridas e os padrões de relacionamento disfuncionais que contribuíram para o desenvolvimento e a manutenção da dependência de Gwen. A abordagem sistêmica enfatiza a importância de incluir a família no processo de tratamento, pois a recuperação do indivíduo está intrinsecamente ligada à transformação do sistema familiar como um todo.

 

O Modelo Minnesota no Filme

O tratamento retratado em "28 Dias" é baseado no Modelo Minnesota, uma abordagem terapêutica amplamente utilizada no tratamento da dependência química. Desenvolvido nos Estados Unidos na década de 1950, esse modelo integra os princípios dos 12 Passos dos Alcoólicos Anônimos (A.A.) com a psicoterapia profissional. Sua abordagem é biopsicossocial, reconhecendo que a dependência tem dimensões físicas, psicológicas e sociais. As características centrais do Modelo Minnesota, como a terapia em grupo, as palestras educativas, as sessões individuais e a ênfase na espiritualidade (entendida de forma ampla, não necessariamente religiosa), são bem representadas na rotina da clínica do filme. A eficácia desse modelo reside na combinação do apoio mútuo entre os pares (outros dependentes em recuperação) com a orientação profissional, criando um ambiente estruturado e de apoio que facilita a conscientização sobre a doença e a adoção de um novo estilo de vida.

 

Analogias com a Sociedade Contemporânea

A jornada de Gwen, embora fictícia, dialoga diretamente com os desafios da sociedade contemporânea. O aumento do consumo de álcool e outras drogas, muitas vezes como uma forma de lidar com o estresse, a ansiedade e a pressão social, é uma realidade preocupante. A pandemia de COVID-19, por exemplo, exacerbou problemas de saúde mental e levou a um aumento no uso de substâncias como mecanismo de enfrentamento. Além das dependências químicas tradicionais, novas formas de vício, como a dependência tecnológica e comportamental (jogos, compras, redes sociais), ganham cada vez mais espaço, operando sob mecanismos neurobiológicos semelhantes. A alta prevalência de comorbidades psiquiátricas, como depressão e transtornos de ansiedade, em pacientes com dependência química é outro ponto de atenção, como apontam diversos estudos [7]. A história de Gwen nos lembra que, por trás de cada estatística, existe uma história humana complexa, marcada por dor, mas também pela possibilidade de superação.

 

Comorbidades e Psicotraumas

É fundamental destacar a estreita relação entre psicotrauma e dependência química. Muitas vezes, o uso de substâncias começa como uma tentativa de automedicação para aliviar os sintomas de um trauma não processado, como flashbacks, ansiedade intensa e pesadelos. Estudos demonstram uma alta prevalência de transtornos de estresse pós-traumático (TEPT) em populações com dependência química. Além disso, a presença de comorbidades psiquiátricas, como depressão e transtornos de ansiedade, é a regra, e não a exceção [8]. Esses transtornos podem tanto preceder o vício, aumentando a vulnerabilidade do indivíduo, quanto ser uma consequência do uso crônico de substâncias. A abordagem terapêutica, portanto, precisa ser integrada, tratando tanto a dependência quanto as comorbidades e os traumas subjacentes para que a recuperação seja sustentável. O filme sutilmente alude a essa complexidade na história de Gwen, sugerindo que sua jornada de cura vai além da simples abstinência, envolvendo a confrontação com seu passado doloroso. 


A mensagem que ecoa do filme é de esperança e resiliência. Ela nos mostra que, mesmo nos momentos mais sombrios, a capacidade de mudança reside dentro de nós, esperando para ser despertada.
A mensagem que ecoa do filme é de esperança e resiliência. Ela nos mostra que, mesmo nos momentos mais sombrios, a capacidade de mudança reside dentro de nós, esperando para ser despertada.

A Coragem de se Reconstruir

Ao final dos 28 Dias, a transformação de Gwen Cummings não é um ponto final, mas o início de uma nova jornada, agora pautada pela autoconsciência e pela coragem de se reconstruir. A história dela, assim como a de tantas outras pessoas que enfrentam a dependência química, nos ensina que a recuperação é um processo contínuo, um dia de cada vez, repleto de desafios, mas também de imensas possibilidades.


A mensagem que ecoa do filme é de esperança e resiliência. Ela nos mostra que, mesmo nos momentos mais sombrios, a capacidade de mudança reside dentro de nós, esperando para ser despertada. Se você se sente tocado por essa história, seja por vivências pessoais ou pela de alguém próximo, saiba que não está sozinho. A busca por ajuda é o primeiro e mais corajoso passo.


É importante ressaltar que os tratamentos e orientações da medicina tradicional devem ser seguidos e mantidos, sendo as terapias integrativas um complemento valioso para a jornada de cura e bem-estar. A combinação de diferentes abordagens, como a psicoterapia, o apoio de grupos como os 12 Passos, e o cuidado com a saúde física e espiritual, cria uma rede de suporte poderosa que potencializa a transformação.


A jornada pode ser longa e sinuosa, mas cada passo em direção à recuperação é uma vitória, uma reafirmação da vida e do amor-próprio. Para quem deseja aprofundar o entendimento sobre as múltiplas dimensões da dependência química no contexto brasileiro, a leitura do livro Dependência Química: Prevenção, Tratamento e Políticas Públicas, organizado por diversos especialistas, oferece um panorama abrangente e esclarecedor.


Se você quer compreender melhor como experiências traumáticas podem alimentar a dependência química, especialmente no contexto brasileiro, recomendo a leitura do artigo "Alcoolismo, A Raiz Oculta do Vício: Como Traumas na Infância e Adolescência Alimentam o Problema", publicado pelo Espaço Vida Integral. A reflexão é potente, sensível e necessária — um convite à empatia e ao entendimento sobre os caminhos da dor e da cura.

 

Que o recomeço seja sempre possível, e o autocuidado, uma escolha diária.


Com carinho, Silvia Rocha


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master
Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.

 






Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.

 

Contato:

Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta

WhatsApp: (12) 98182-2495


 

Referências Bibliográficas

[1] FREUD, S. (1905). O Chiste e sua relação com o inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago.

[2] FREUD, S. (1950 [1895]).Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. I. Rio de Janeiro: Imago.

[3] LACAN, J. (1966).O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

[4] RIBEIRO, M., & LARANJEIRA, R. (2002).Neurobiologia da dependência química. Revista Brasileira de Psiquiatria, 24(Supl I), 3-7.

[5] Di Chiara, G., & Imperato, A. (1988).Drugs abused by humans preferentially increase synaptic dopamine concentrations in the mesolimbic system of freely moving rats. Proceedings of the National Academy of Sciences, 85(14), 5274-5278.

[6] PAZ, F. M., & Colossi, P. M. (2013).Aspectos da dinâmica da família com dependência química. Estudos de Psicologia (Campinas), 30(4), 551-559.

[7] FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ). (2019).III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ICICT.

[8] HESS, A. R. B., et al. (2012).Comorbidades psiquiátricas em dependentes químicos em tratamento. Estudos de Psicologia (Natal), 17(2), 285-291.

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