Criança Interior: Um Caminho para a Cura e a Plenitude
- Silvia Rocha

 - 5 de set.
 - 8 min de leitura
 
Atualizado: 26 de set.
Em um mundo cada vez mais complexo e desafiador, onde a busca por bem-estar e autoconhecimento se intensifica, um conceito milenar ressurge com força renovada: a Criança Interior. Mais do que uma metáfora poética, a Criança Interior representa a essência de quem fomos, as memórias, emoções e experiências que moldaram nossa infância e que, muitas vezes, continuam a influenciar profundamente nossa vida adulta. Mas qual a real importância de nos reconectarmos com essa parte de nós? E como essa jornada pode nos conduzir à cura de feridas profundas e à plenitude? Este artigo propõe uma exploração aprofundada desse conceito, integrando perspectivas da psicologia analítica, psicanálise e terapia sistêmica familiar, e correlacionando-o com dados estatísticos atuais sobre saúde mental e física. Ao final, convidamos você a embarcar em uma jornada de autodescoberta e acolhimento, desvendando como a cura da Criança Interior pode transformar sua realidade e abrir portas para uma vida mais autêntica e feliz.

Carl Jung e o Arquétipo da Criança Divina
Carl Gustav Jung, o renomado psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, não utilizou o termo exato "criança interior", mas seu trabalho seminal sobre os arquétipos e o inconsciente coletivo pavimentou o caminho para essa compreensão. Para Jung, a "Criança Divina" ou "Puer Aeternus" é um arquétipo universal, uma imagem primordial presente no inconsciente de toda a humanidade. Este arquétipo simboliza o potencial de totalidade, o início e o fim, a essência pré-consciente e pós-consciente do ser humano. É a representação da espontaneidade, da criatividade, da inocência e da capacidade de renovação. A criança, em sua visão, é o germe da totalidade, uma imagem do self em seu estado mais puro e indiferenciado [1].
Jung acreditava que a conexão com esse arquétipo é vital para o processo de individuação, a jornada de se tornar um indivíduo completo e integrado. Quando a Criança Divina é negligenciada ou ferida, suas qualidades positivas podem se manifestar de forma distorcida, levando a comportamentos imaturos, dependência emocional ou uma sensação de vazio. A integração da Criança Interior, portanto, envolve reconhecer e acolher as experiências da infância, tanto as alegres quanto as dolorosas, permitindo que o adulto acesse a sabedoria inata e a vitalidade que residem nessa parte primordial da psique. É um convite a resgatar a dimensão lúdica e a capacidade de maravilhar-se com a vida, mesmo diante das pressões e responsabilidades da vida adulta.
A Influência da Infância na Psicanálise
Tal como Jung, Sigmund Freud não utilizou explicitamente o termo "criança interior", mas sua teoria psicanalítica e os desenvolvimentos posteriores dentro da visão freudiana reconhecem a importância central das vivências infantis na constituição da psique adulta. A psicanálise investiga como os traumas precoces, as relações objetais primárias e os conflitos não resolvidos da infância moldam o inconsciente, influenciando padrões emocionais, comportamentais e relacionais ao longo da vida. [2].
Para a psicanálise, a "criança interior ferida" pode ser compreendida como as memórias e emoções não processadas da infância que continuam a operar no inconsciente, influenciando as escolhas e reações do indivíduo no presente. Essas feridas podem se originar de experiências de abandono, rejeição, abuso (físico, emocional ou sexual), negligência ou superproteção. Quando essas experiências não são devidamente elaboradas, elas podem gerar mecanismos de defesa disfuncionais, como repressão, negação ou projeção, que impedem o desenvolvimento saudável do ego. A terapia psicanalítica busca trazer à consciência esses conteúdos inconscientes, permitindo que o adulto revisite e ressignifique suas experiências passadas, liberando-se de padrões repetitivos e dolorosos. Ao acolher a criança interna, o indivíduo pode trabalhar suas dores e transformá-las, para que o adulto possa viver de forma mais autêntica e livre.
A Criança Interior no Contexto Sistêmico
A terapia sistêmica familiar vê o indivíduo não como uma entidade isolada, mas como parte integrante de um sistema familiar complexo, onde os problemas de um membro afetam e são afetados por todos os outros. Nesse contexto, o conceito de "criança interior" está intrinsecamente ligado às dinâmicas familiares e aos padrões de comportamento que são transmitidos de geração em geração. As feridas da Criança Interior podem ser resultado de disfunções no sistema familiar, como comunicação inadequada, papéis rígidos, segredos familiares, negligência ou abuso sistêmico [3].
A terapia sistêmica busca identificar esses padrões e ajudar o indivíduo a se libertar de lealdades invisíveis e emaranhamentos familiares que impedem o seu desenvolvimento e a expressão plena de sua Criança Interior. A cura, nesse contexto, envolve a ressignificação do papel do indivíduo dentro do sistema familiar, a quebra de ciclos disfuncionais e a criação de novas formas de relacionamento mais saudáveis e funcionais. É um processo que reconhece a interconexão entre os membros da família e busca a harmonia do sistema como um todo.

Correlação com Transtornos Psíquicos e Emocionais
Estudos têm demonstrado consistentemente a ligação entre traumas na infância e o desenvolvimento de transtornos psíquicos e emocionais na vida adulta. Uma pesquisa recente da Universidade de São Paulo (USP), publicada em fevereiro de 2025, revelou que mais de 80% dos jovens brasileiros passaram por pelo menos um evento traumático até os 18 anos. Alarmantemente, estima-se que 30,6% dos diagnósticos de transtornos psiquiátricos em adolescentes aos 18 anos estejam diretamente relacionados a essas experiências traumáticas na infância [5].
Outro estudo, divulgado pelo jornal O Globo em maio de 2024, aponta que traumas na infância dobram o risco de doenças mentais na vida adulta. A exposição a eventos traumáticos na infância pode aumentar significativamente a vulnerabilidade a transtornos de ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e outros problemas de saúde mental [6]. A Medscape, em abril de 2024, reforça essa correlação, indicando que adultos que sofreram traumas na infância têm mais que o dobro de probabilidade de serem diagnosticados com uma doença psiquiátrica em comparação com aqueles que não tiveram tais experiências [7].
A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca a gravidade da situação global, afirmando que as condições de saúde mental são responsáveis por 16% da carga global de doenças e lesões em pessoas com idade entre 10 e 19 anos. Metade de todas as condições de saúde mental começam aos 14 anos, mas a maioria não é detectada nem tratada, evidenciando a urgência de intervenções precoces e o reconhecimento do impacto das experiências infantis [8].
Correlação com Doenças Físicas e Comorbidades
O impacto dos traumas na infância transcende a esfera psicológica, manifestando-se também no corpo físico. Pesquisas indicam que pessoas que tiveram experiências adversas na infância têm maior risco de desenvolver doenças crônicas na vida adulta. O Estadão, em julho de 2022, reportou que traumas infantis podem levar a um aumento na incidência de diabetes, obesidade, doenças cardíacas e distúrbios autoimunes [9].
A exposição a traumas na infância pode desencadear alterações no sistema imunológico, inflamação crônica e disfunção do eixo HPA (hipotálamo-hipófise-adrenal), um sistema crucial na resposta ao estresse. Essas alterações fisiológicas contribuem para o desenvolvimento de diversas comorbidades físicas. A Intramed, em abril de 2023, especificamente associou a adversidade na infância ao aumento do risco de desenvolver diabetes tipo 2 no início da idade adulta [10]. Complementando, a Psitto, em maio de 2024, listou doenças cardíacas, diabetes e distúrbios gastrointestinais como possíveis consequências de traumas infantis não resolvidos [11].

Estudos de Casos
Um dos estudos mais abrangentes sobre o tema é o Estudo ACEs (Adverse Childhood Experiences), realizado nos Estados Unidos. Embora não seja um estudo de caso individual, ele demonstrou uma forte correlação dose-resposta entre o número de ACEs (como abuso físico, emocional, sexual, negligência, disfunção familiar, etc.) e o risco de problemas de saúde física e mental, comportamentos de risco e mortalidade precoce. Por exemplo, indivíduos com 4 ou mais ACEs têm um risco significativamente maior de desenvolver doenças cardíacas, câncer, doenças pulmonares crônicas, depressão e alcoolismo [12].
Em um contexto mais próximo, observamos inúmeros casos de adultos que, após anos de sofrimento com ansiedade crônica, depressão persistente, dores físicas inexplicáveis ou doenças autoimunes, descobrem em terapia a raiz de seus problemas em traumas infantis não resolvidos. São histórias de negligência emocional que geraram uma profunda sensação de não merecimento, de abuso físico que resultou em dificuldade de estabelecer limites, ou de disfunção familiar que levou a padrões de relacionamento autodestrutivos. A jornada de cura da Criança Interior, nesses casos, muitas vezes leva a uma melhora significativa não apenas da saúde mental e emocional, mas também da saúde física, à medida que o corpo libera as tensões e os padrões de adoecimento associados aos traumas passados.

No Abraço da Infância: Caminhos de Reconexão e Amor
Querido leitor, querida leitora, Ao final desta jornada de reflexão sobre a Criança Interior, que se revele no coração a profundidade e a beleza desse percurso. A Criança Interior não representa um peso do passado, mas sim um manancial de potencialidades — um guia para a autenticidade e a plenitude.
As feridas da infância não determinam o destino; são convites à cura, ao acolhimento e à construção de uma nova narrativa. Olhar para essa parte interna com amor e compaixão é oferecer o cuidado que talvez tenha faltado. Esse gesto não apenas transforma o próprio ser, mas também reverbera na restauração do sistema familiar e na edificação de um mundo mais consciente e afetuoso.
O caminho de cura é contínuo, marcado por descobertas e aprendizados. Gentileza consigo mesmo, celebração dos pequenos avanços e confiança na capacidade de florescer são essenciais. Que a Criança Interior se torne uma aliada fiel nesta bela aventura de viver.
Para uma experiência visual e tocante, vale assistir ao filme O Pequeno Príncipe (2015), uma animação que relembra a importância de manter viva a conexão com a essência infantil e com o poder de sonhar.
E para aprofundar a compreensão sobre o tema, o artigo " O Pequeno Príncipe (2015): Um Olhar Psicológico Sobre a Criança que nos Habita” oferece reflexões sensíveis sobre o universo simbólico da infância e seu impacto na vida adulta.
Um abraço, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casais, sistêmicas e familiares.
Possui formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicanálise, Doenças Psicossomáticas, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
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WhatsApp: (12) 98182-2495
Referências Bibliográficas
[1] Jung, C. G. (2011). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes.
[2] Freud, S. (1996). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
[3] Minuchin, S. (1974). Families and family therapy. Cambridge, MA: Harvard University Press.
[4] Hellinger, B. (2007). Ordens do amor: um guia para o trabalho com constelações familiares. São Paulo: Cultrix.
[5] Jornal da USP. (2025, fevereiro). Traumas de infância estão associados a mais de 30% dos transtornos psiquiátricos em adolescentes. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/traumas-de-infancia-estao-associados-a-mais-de-30-dos-transtornos-psiquiatricos-em-adolescentes/
[6] O Globo. (2024, maio). Trauma na infância dobra o risco de doença mental na vida adulta, mostra estudo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/05/27/trauma-na-infancia-dobra-o-risco-de-doenca-mental-na-vida-adulta-mostra-estudo.ghtml
[7] Medscape. (2024, abril). Adversidades na infância e desfechos de saúde mental na vida adulta. Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6510922
[8] Organização Mundial da Saúde. (s.d.). Saúde mental dos adolescentes. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/saude-mental-dos-adolescentes
[9] Estadão. (2022, julho). Traumas da infância podem impactar a saúde do adulto; saiba como. Disponível em: https://www.estadao.com.br/emais/comportamento/traumas-da-infancia-podem-impactar-a-saude-do-adulto-saiba-como/?srsltid=AfmBOop780QCwxrQHIuJWLsJ7CHNQjDLyyfKbVlU6oq2WSR4y3fQT3gU
[10] Intramed. (2023, abril). A adversidade na infância foi associada ao aumento do risco de diabetes tipo 2. Disponível em: https://www.intramed.net/content/104201
[11] Psitto. (2024, maio). Como os traumas infantis impactam na vida adulta?. Disponível em: https://www.psitto.com.br/blog/traumas-infantis-vida-adulta/
[12] Centers for Disease Control and Prevention. (s.d.). Adverse Childhood Experiences (ACEs). Disponível em: https://www.cdc.gov/violenceprevention/aces/index.html





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