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Filme "O Quarto de Jack": A Psicologia do Vínculo Materno como Ferramenta de Sobrevivência

Atualizado: 21 de out.

Por: Silvia Rocha

 

“Você vai amar o mundo”. Esta frase, sussurrada por Joy (Brie Larson) ao seu filho Jack (Jacob Tremblay) de cinco anos, encapsula a essência emocional e psicológica do filme "O Quarto de Jack" (2015), dirigido por Lenny Abrahamson. A cena, que antecede a arriscada fuga do cativeiro onde viveram por anos, não é apenas uma promessa, mas um ato de transferência de esperança e resiliência. O filme, narrado sob a perspectiva ingênua e ao mesmo tempo profunda de Jack, nos convida a uma imersão em um universo de privação extrema, onde o vínculo materno se revela não apenas como um laço de afeto, mas como a principal ferramenta para a sobrevivência psíquica e a posterior redescoberta do mundo. Este artigo propõe uma análise psicológica da obra, explorando como a força do apego, a criação de um ambiente facilitador e a busca por um sentido se tornam pilares para a resiliência emocional diante de um trauma avassalador. 


“Você vai amar o mundo”. Esta frase, sussurrada por Joy (Brie Larson) ao seu filho Jack (Jacob Tremblay) de cinco anos, encapsula a essência emocional e psicológica do filme "O Quarto de Jack" (2015), dirigido por Lenny Abrahamson.
“Você vai amar o mundo”. Esta frase, sussurrada por Joy (Brie Larson) ao seu filho Jack (Jacob Tremblay) de cinco anos, encapsula a essência emocional e psicológica do filme "O Quarto de Jack" (2015), dirigido por Lenny Abrahamson.

Sinopse, História e Contexto Histórico-Social

O Quarto de Jack narra a história de Joy, uma jovem sequestrada aos 17 anos e mantida em cativeiro em um pequeno quarto por um homem conhecido como “Velho Nick”. Durante sete anos, ela é submetida a abusos constantes, resultando no nascimento de seu filho, Jack. Para a criança, o quarto é o único mundo que existe; a televisão é uma “caixa mágica” com imagens irreais, e o Velho Nick é uma visita noturna assustadora. Joy, em um esforço hercúleo de proteção, constrói uma realidade lúdica e estruturada para Jack, transformando o espaço exíguo em um universo de aprendizado e afeto. A trama se intensifica quando Joy elabora um plano de fuga, que lança Jack em um mundo desconhecido e aterrorizante, forçando ambos a confrontar a complexa jornada de reintegração social e cura do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

 

Lançado em 2015, o filme é uma adaptação do romance homônimo de Emma Donoghue, que também assina o roteiro. A obra foi inspirada por casos reais de cativeiro, como o de Elisabeth Fritzl na Áustria, mas transcende a crônica factual para focar na dinâmica psicológica interna dos personagens. O filme emergiu em um contexto cultural onde discussões sobre saúde mental, trauma psicológico e violência contra a mulher ganhavam cada vez mais espaço na esfera pública. A recepção foi aclamada, rendendo a Brie Larson o Oscar de Melhor Atriz e indicações a Melhor Filme, Diretor e Roteiro Adaptado. Sua relevância clínica e social reside na poderosa representação da resiliência infantil e da força indestrutível do vínculo afetivo como fatores de proteção em contextos de adversidade extrema.

 

Fundamentação Psicológica

A narrativa de O Quarto de Jack oferece um terreno fértil para a aplicação de conceitos psicológicos clássicos, que nos ajudam a decifrar as camadas de significado por trás da jornada de Joy e Jack.

 

A Teoria do Apego de John Bowlby: O Vínculo como Sobrevivência

A relação entre Joy e Jack é a personificação da teoria do apego de John Bowlby. Para Bowlby, o apego é um sistema inato que garante a proximidade entre a criança e seu cuidador, assegurando proteção e sobrevivência. No ambiente hostil do quarto, Joy consegue forjar um apego seguro com Jack. Ela é sua base segura, a figura que oferece conforto, regula suas emoções e incentiva a exploração do pequeno universo ao redor. Essa conexão visceral é o que permite a Jack desenvolver um senso de si mesmo e uma confiança básica no outro, mesmo em total isolamento.

 

Curiosamente, a própria história de vida de Bowlby ilumina sua teoria. Nascido em uma família britânica de classe alta, ele via a mãe por apenas uma hora ao dia e foi cuidado por uma babá, cuja partida, quando ele tinha quatro anos, foi descrita por ele como uma perda trágica. A experiência em um internato aos sete anos aprofundou sua sensibilidade ao sofrimento infantil. Bowlby entendeu, a partir de sua própria história, que a privação do cuidado materno é uma fonte de profundo sofrimento psíquico. Joy, intuitivamente, faz o oposto do que a cultura da época de Bowlby pregava: ela se dedica integralmente a Jack, provando que a presença constante e afetuosa é o alicerce da saúde mental. 


A relação entre Joy e Jack é a personificação da teoria do apego de John Bowlby. Para Bowlby, o apego é um sistema inato que garante a proximidade entre a criança e seu cuidador, assegurando proteção e sobrevivência
A relação entre Joy e Jack é a personificação da teoria do apego de John Bowlby. Para Bowlby, o apego é um sistema inato que garante a proximidade entre a criança e seu cuidador, assegurando proteção e sobrevivência

O Ambiente Facilitador de Donald Winnicott: A “Mãe Suficientemente Boa”

Donald Winnicott introduziu o conceito de “mãe suficientemente boa”, aquela que, sem ser perfeita, consegue prover um ambiente facilitador (holding environment) para o desenvolvimento do bebê. Joy é a “mãe suficientemente boa” por excelência. Dentro das limitações brutais do cativeiro, ela cria um ambiente que sustenta, ampara e dá contorno à experiência de Jack. Ela realiza as três funções maternas descritas por Winnicott:

 

1       Holding (Sustentação): O cuidado físico e emocional que integra o psiquismo da criança.

2       Handling (Manejo): A forma como o bebê é tocado e cuidado, que o ajuda a desenvolver um senso de personalização, habitando o próprio corpo.

3       Apresentação de Objetos: A maneira como a mãe apresenta o mundo (os objetos) para o filho, permitindo que ele se relacione com a realidade.

 

Joy transforma o trauma em rotina, a privação em jogo. O quarto, que é uma prisão, se torna um lar. Ela falha, se desespera, mas sempre retorna para o filho, permitindo que ele experimente frustrações na medida certa para amadurecer, preparando-o, sem que ele soubesse, para a “apresentação” do maior de todos os objetos: o mundo lá fora.

 

O Estádio do Espelho de Jacques Lacan: A Formação do Eu

Para Jack, Joy é o primeiro espelho. Segundo Jacques Lacan, no estádio do espelho, a criança, entre os 6 e 18 meses, reconhece sua imagem e inicia a formação do Eu. É um momento de júbilo, mas também de alienação, pois a imagem que ela vê é externa. No filme, o rosto, os olhos e as palavras de Joy são o espelho que reflete para Jack sua própria existência. É através do olhar da mãe que ele se constitui como um ser unificado e amado. Quando eles finalmente escapam, Jack se depara com seu reflexo em espelhos reais e com a imagem de si mesmo na televisão, um processo desorientador que o força a reestruturar sua identidade para além do olhar materno, integrando-se a um mundo de múltiplos “outros”.

 

O Sentido da Vida de Viktor Frankl: A Logoterapia no Cativeiro

Viktor Frankl, psiquiatra sobrevivente do Holocausto e fundador da Logoterapia, postulou que a força mais primária do ser humano é a busca por um sentido para a vida. Em seu livro Em Busca de Sentido, ele observa que, mesmo nas situações mais desumanas, aqueles que tinham um “porquê” para viver conseguiam suportar quase qualquer “como”. Joy encontra em Jack o seu sentido último. Cuidar dele, protegê-lo e, finalmente, libertá-lo se torna sua razão de existir, a força que a impede de sucumbir ao desespero. Após a fuga, quando Joy entra em depressão e tenta o suicídio, é porque seu sentido anterior (proteger Jack no quarto) se esvaiu. A cura para ambos envolve a difícil tarefa de encontrar um novo sentido para a vida em liberdade.

 

Sinais para Observar no Filme "O Quarto de Jack"

•        A Percepção da Realidade: Como Jack constrói sua realidade dentro do Quarto e como isso se choca com o mundo exterior. Isso nos convida a refletir sobre nossas próprias "bolhas" de realidade e como elas são formadas.

•        O Vínculo Materno-Infantil: A força inabalável do amor de Joy por Jack e sua dedicação em protegê-lo e educá-lo, mesmo em cativeiro. Um lembrete do poder transformador do apego seguro.

•        A Adaptação ao Trauma: As diferentes formas como Joy e Jack lidam com o trauma antes e depois da fuga. Joy manifesta sintomas de TEPT, enquanto Jack, com sua inocência, se adapta de maneira surpreendente, mas não sem suas próprias dificuldades.

•        O Papel da Sociedade: A reação da mídia e da família de Joy ao seu retorno, expondo a complexidade da reintegração e o julgamento social. Isso nos faz questionar como acolhemos e apoiamos vítimas de trauma.

•        A Busca pela Liberdade e Identidade: A luta de Joy para recuperar sua identidade e a de Jack para construir a sua em um mundo novo. Uma poderosa metáfora para a busca contínua por autonomia e autoconhecimento.

 

Joy é a “mãe suficientemente boa” por excelência. Dentro das limitações brutais do cativeiro, ela cria um ambiente que sustenta, ampara e dá contorno à experiência de Jack.

 

Quando o Amor é Maior que o Quarto: Reflexões Sobre Vínculo, Cura e Esperança

Querido leitor, querida leitora,

Mais do que um filme sobre cativeiro, O Quarto de Jack é uma celebração da força invisível que nos sustenta: o amor. A história de Joy e Jack, vista sob a lente da psicologia, revela que a resiliência emocional não é um dom nato, mas uma construção diária feita de cuidado, presença e vínculo — mesmo quando o mundo ao redor é hostil. É nesse espaço afetivo, e não físico, que Jack aprende a confiar, imaginar e crescer, guiado por uma mãe que, ao ser “suficientemente boa”, oferece mais do que proteção: entrega sentido e humanidade.

O filme nos convida a refletir sobre o poder transformador das relações. Diante da dor, o afeto é abrigo; diante do medo, a presença é cura. Mesmo em ambientes de privação, é possível construir pontes para a liberdade emocional. O Quarto de Jack nos ensina que o trauma pode ser atravessado quando há alguém disposto a permanecer — com escuta, afeto e coragem. Essa permanência é o que transforma um quarto fechado em um universo de possibilidades.

A narrativa inspira um olhar atento para nossas próprias relações: que espaços afetivos estamos oferecendo às crianças, aos nossos pacientes, a nós mesmos? Que quartos emocionais ainda precisam ser abertos para que a vida possa entrar? Para aprofundar essa reflexão, vale a leitura de Em Busca de Sentido, de Viktor Frankl, obra essencial sobre propósito em meio à adversidade, e o artigo A Importância do Apego Seguro na Infância: Construindo Resiliência desde Cedo, que explora os fundamentos do vínculo e da segurança emocional nos primeiros anos de vida.

Que possamos continuar criando espaços onde o afeto floresça, mesmo depois da dor. Porque, como Joy e Jack nos mostram, o amor — quando verdadeiro — é sempre maior que qualquer quarto.


Um abraço, Silvia Rocha


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master
Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master.

Sobre a Autora

Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master.

Formada em Psicologia em 2005, Silvia reúne uma ampla gama de especializações que refletem sua busca incansável por conhecimento e transformação: Hipnose Clínica, Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia do Idoso, Psicologia do Luto, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Psicologia Transpessoal, Escrita Terapêutica, Terapias Quânticas e Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar, Apometria Clínica, Coaching.

 



Sua experiência de mais de 30 anos na área corporativa, somada ao MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e à Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, fortalece sua atuação como Coach Pessoal, integrando saberes da psicologia e da gestão para apoiar pessoas em seus processos de mudança, propósito e realização. Além disso, é escritora no Blog do Espaço Vida Integral, onde compartilha artigos, reflexões e conteúdos educativos voltados ao autoconhecimento, à espiritualidade e às práticas terapêuticas.

 

Contato

Instagram e Facebook: silviarocha.terapeuta


Referências Bibliográficas e Cinematográficas

ABRAHAMSON, Lenny (Diretor). O Quarto de Jack [Filme]. Element Pictures, Film4, Telefilm Canada, 2015.

Academia.edu. (s.d.). TRAUMA, RESILIENCE & SURVIVAL INSIDE/OUTSIDE ROOM: A CRITICAL STUDY. Disponível em: https://www.academia.edu/44939262/TRAUMA_RESILIENCE_and_SURVIVAL_INSIDE_OUTSIDE_ROOM_A_CRITICAL_STUDY 

BOWLBY, John. Apego e Perda, Vol. 1: Apego. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

Breaking Free Foundation. (2015, 12 de novembro). 'Room' Perfectly Paints the Ripple Effects of PTSD. Disponível em: https://www.breakingfreefoundation.ca/bff-blog-entries/room-perfectly-paints-the-ripple-effects-of-ptsd [2]

FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes, 2017.

LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

Najeeb, Z., Bashir, S., & Saleem, F. (2024). Attachment as a Key in the Development of Personality: A Psychoanalytical Interpretation of Emma Donoghue’s Room. Journal of Development and Social Sciences, 5(2), 454-463. [3]

Wikipedia. (s.d.). Natascha Kampusch. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Natascha_Kampusch [5]

WIKIPÉDIA. John Bowlby. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Bowlby. Acesso em: 01 out. 2025.

WINNICOTT, Donald W. O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.

WINNICOTT, Donald W. Os Bebês e Suas Mães. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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