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Apego Seguro na Infância: A Construção da Resiliência começa cedo

Por: Silvia Rocha


Imagine um pequeno barco cruzando um oceano vasto, sujeito a mudanças bruscas de clima e ondas imprevisíveis. Para seguir adiante e suportar as tempestades, ele precisa de um porto seguro — um lugar onde possa ancorar, se fortalecer e sentir-se protegido. No desenvolvimento humano, esse porto é o vínculo de apego. A qualidade dessa conexão inicial, formada nos primeiros momentos da vida, molda a base emocional sobre a qual construímos nossa capacidade de amar, confiar e enfrentar os desafios com resiliência.


Embora pareça intuitivo, o conceito de apego seguro é uma das descobertas mais transformadoras da psicologia do desenvolvimento. Ele revela que a força emocional nasce da certeza de pertencimento — de saber que ocupamos um espaço no mundo e no coração de alguém. Este artigo é um convite à reflexão sobre a beleza e a complexidade desses primeiros laços, e sobre como a presença afetiva na infância sustenta uma vida adulta mais íntegra. Como pais, cuidadores ou terapeutas, podemos cultivar portos seguros para as futuras gerações e, assim, contribuir para uma sociedade mais empática e emocionalmente saudável.


O Quarto de Jack (2015), inspirado no romance de Emma Donoghue, revela com intensidade como o vínculo afetivo entre mãe e filho pode se tornar um eixo de segurança mesmo nas condições mais adversas. Um retrato comovente da potência do cuidado e da presença emocional.
O Quarto de Jack (2015), inspirado no romance de Emma Donoghue, revela com intensidade como o vínculo afetivo entre mãe e filho pode se tornar um eixo de segurança mesmo nas condições mais adversas. Um retrato comovente da potência do cuidado e da presença emocional.

Raízes Históricas e Sociais da Teoria do Apego

A compreensão do apego não surgiu em um vácuo. Durante séculos, a infância foi vista sob diferentes prismas, muitas vezes negligenciando a importância dos laços afetivos. No início do século XX, com o advento da psicanálise, o foco começou a se deslocar para as experiências precoces, mas ainda sob uma ótica predominantemente intrapsíquica. Foi somente após a Segunda Guerra Mundial, com os estudos de John Bowlby sobre crianças órfãs e institucionalizadas, que a necessidade de um vínculo afetivo consistente ganhou status de necessidade humana fundamental. Bowlby [1] observou que a privação do cuidado materno gerava não apenas sofrimento, mas um profundo impacto no desenvolvimento social e emocional, desafiando a crença de que apenas as necessidades físicas importavam.

 

Hoje, vivemos em uma era de paradoxos. Se por um lado a psicologia do desenvolvimento nunca esteve tão em voga, com uma crescente conscientização sobre a importância da parentalidade consciente e da saúde mental infantil, por outro, a sociedade contemporânea impõe desafios imensos aos cuidadores. A aceleração do tempo, as demandas do mercado de trabalho e a onipresença das tecnologias digitais frequentemente fragmentam a presença e a atenção, que são a matéria-prima do apego seguro. Discutir o apego hoje é, portanto, discutir como podemos resgatar e proteger a conexão humana em um mundo que parece conspirar para o distanciamento.

 

Apego como Necessidade Humana: Bases Psicológicas

No coração da nossa discussão está a Teoria do Apego, formulada por John Bowlby e expandida por Mary Ainsworth. Bowlby, influenciado pela etologia e pela psicanálise, postulou que o ser humano nasce com uma necessidade inata de se conectar a uma figura de cuidado principal. Esse vínculo não é um mero derivado da alimentação, mas um sistema motivacional primário, essencial para a sobrevivência e para a regulação emocional. A figura de apego funciona como uma "base segura", a partir da qual a criança explora o mundo, e um "porto seguro", para onde retorna em momentos de angústia [1].

 

Mary Ainsworth [2], através de sua pesquisa inovadora "Situação Estranha", identificou diferentes padrões de apego, sendo o apego seguro o mais adaptativo. Crianças com apego seguro confiam na disponibilidade e na sensibilidade de seus cuidadores, sentindo-se livres para explorar o ambiente, pois sabem que terão suporte se necessário. Outros teóricos enriquecem essa visão. Donald Winnicott [3] nos fala da "mãe suficientemente boa" e do "ambiente facilitador", conceitos que ressoam com a ideia de uma base segura.


Não se trata de perfeição, mas de uma sintonia afetiva que permite à criança desenvolver um senso de self verdadeiro e confiante. Mais recentemente, a neurobiologia interpessoal de Daniel Siegel [4] nos mostra, em nível cerebral, como as interações de apego moldam as estruturas neurais responsáveis pela regulação emocional, pela empatia e pela resiliência. A presença sintonizada do cuidador ajuda a co-regular o sistema nervoso da criança, ensinando-a, gradualmente, a se auto-regular.

 

Três pilares da psicologia do desenvolvimento — Bowlby, Ainsworth e Winnicott — lado a lado em um retrato imaginário que homenageia o legado de quem nos ensinou que vínculos seguros são a base para uma vida emocionalmente saudável. Uma imagem que celebra o cuidado, a presença e a construção de portos seguros ao longo da vida.
Três pilares da psicologia do desenvolvimento — Bowlby, Ainsworth e Winnicott — lado a lado em um retrato imaginário que homenageia o legado de quem nos ensinou que vínculos seguros são a base para uma vida emocionalmente saudável. Uma imagem que celebra o cuidado, a presença e a construção de portos seguros ao longo da vida.

 

Estudo de Caso: Filme "O Quarto de Jack"

Na prática clínica, a gramática do apego é a linguagem subjacente a muitas das nossas escutas. Pacientes que descrevem uma sensação crônica de vazio, uma dificuldade persistente em confiar nos outros ou um medo paralisante do abandono estão, muitas vezes, nos contando histórias de apegos inseguros ou desorganizados. A terapia, em sua essência, pode ser vista como a oferta de uma segunda chance de apego – uma relação de base segura onde o paciente pode, finalmente, ser visto, compreendido e sentir-se seguro para explorar seus mundos internos.

 

Um exemplo poderoso e comovente da força do apego seguro em circunstâncias extremas é retratado no filme O Quarto de Jack (2015), baseado no romance de Emma Donoghue [5]. O filme narra a história de Joy e seu filho de cinco anos, Jack, que vivem em cativeiro em um pequeno quarto. Para Jack, aquele quarto é o mundo inteiro. Joy, apesar de sua própria dor e do trauma inimaginável, cria para Jack um universo de rotinas, brincadeiras e, acima de tudo, de um amor inabalável. Ela é sua professora, sua companheira de brincadeiras e sua única fonte de segurança.

 

O vínculo entre Joy e Jack é um testemunho da teoria de Bowlby em sua forma mais pura. Em um ambiente de privação absoluta, Joy se torna a "base segura" por excelência. É a sua presença constante e sintonizada que permite a Jack desenvolver-se, aprender e manter a sua curiosidade e alegria infantil, apesar do horror que os cerca. Quando eles finalmente escapam, o mundo exterior, vasto e barulhento, é aterrorizante para Jack. É o retorno ao "porto seguro" – o abraço e a presença de sua mãe – que lhe dá a coragem para enfrentar o novo e desconhecido. A resiliência de Jack não é uma característica inata e solitária; ela foi forjada e nutrida na segurança daquele vínculo. Este caso, embora ficcional, ilustra uma verdade universal: a resiliência é relacional. Ela floresce na presença de um apego seguro.

 

Como aponta o psiquiatra e neurocientista Boris Cyrulnik [6], um dos grandes estudiosos da resiliência, não é o trauma em si que determina o destino de uma pessoa, mas a presença ou ausência de "tutores de resiliência" – figuras de apego que oferecem suporte e significado após a adversidade. O apego seguro funciona como um fator de proteção, uma espécie de sistema imunológico emocional que nos ajuda a metabolizar o estresse e a nos recuperarmos das feridas da vida.

 

Neurociência dos Vínculos: Como as Relações Afetivas Moldam o Cérebro

A neurociência contemporânea tem revelado de forma cada vez mais clara como os vínculos de apego literalmente esculpem a arquitetura cerebral. Durante os primeiros anos de vida, o cérebro humano está em seu período de maior plasticidade, formando conexões neuronais a uma velocidade impressionante. As experiências de apego não são apenas vivências emocionais abstratas; elas são eventos neurobiológicos que ativam e fortalecem circuitos específicos no cérebro da criança.


Quando um bebê chora e é atendido com sensibilidade, quando um cuidador olha nos olhos da criança e reflete suas emoções, quando há conforto físico e presença consistente, o sistema nervoso da criança aprende a se regular. O córtex pré-frontal, responsável pela regulação emocional e pelo controle de impulsos, desenvolve-se de forma mais robusta. A amígdala, centro do medo e da resposta ao estresse, aprende a modular suas reações. O eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, que governa a resposta ao estresse, calibra-se de maneira mais equilibrada.

 

Por outro lado, a ausência de um apego seguro, especialmente em contextos de negligência ou abuso, pode resultar em um estado de hipervigilância crônica. O sistema nervoso da criança permanece em um estado de alerta constante, como se estivesse sempre à espera de uma ameaça. Isso pode levar a dificuldades de regulação emocional, problemas de atenção, maior vulnerabilidade a transtornos de ansiedade e depressão, e dificuldades nos relacionamentos ao longo da vida. Compreender essa dimensão neurobiológica não é culpabilizar os cuidadores, mas sim reconhecer a importância fundamental da presença e da sintonia afetiva, e também a possibilidade de reparação e neuroplasticidade ao longo da vida.


Diante de tantas demandas e distrações do mundo contemporâneo, como podemos, enquanto pais e cuidadores, cultivar o apego seguro? A resposta não está na perfeição, mas na presença.
Diante de tantas demandas e distrações do mundo contemporâneo, como podemos, enquanto pais e cuidadores, cultivar o apego seguro? A resposta não está na perfeição, mas na presença.

Parentalidade Consciente: Cultivando o Apego Seguro no Século XXI

Diante de tantas demandas e distrações do mundo contemporâneo, como podemos, enquanto pais e cuidadores, cultivar o apego seguro? A resposta não está na perfeição, mas na presença. Não se trata de estar disponível vinte e quatro horas por dia, mas de oferecer momentos de conexão genuína e de sintonia afetiva. Algumas práticas podem ajudar nesse processo. A primeira é a atenção plena (mindfulness) na relação com a criança. Isso significa, nos momentos de interação, estar verdadeiramente presente, deixando de lado o celular, as preocupações do trabalho e os pensamentos intrusivos. É olhar nos olhos, escutar com o corpo inteiro, perceber as emoções da criança e validá-las, mesmo quando não podemos atender a todos os seus desejos.

 

A segunda prática é a responsividade sensível. Isso não significa atender imediatamente a cada choro ou demanda, mas sim responder de forma consistente e afetuosa, ajudando a criança a dar sentido às suas experiências emocionais. É dizer: "Eu vejo que você está triste porque não pode comer o doce agora. É difícil esperar, não é? Mas eu estou aqui com você." Essa validação emocional, mesmo diante de limites necessários, é o que constrói a segurança.

 

A terceira prática é o autocuidado do cuidador. Não podemos oferecer um porto seguro se estamos naufragando. Cuidar da própria saúde mental, buscar apoio quando necessário, reconhecer os próprios limites e buscar momentos de descanso e conexão consigo mesmo não é egoísmo, mas uma condição para uma parentalidade saudável. Como nos ensinou Winnicott, não precisamos ser perfeitos, mas "suficientemente bons". E para sermos suficientemente bons, precisamos também ser suficientemente cuidados.


Convite à Escuta Interna

Proponho uma pausa gentil e consciente para o mergulho interior. As perguntas a seguir não exigem respostas certas ou definitivas — elas existem para abrir caminhos de escuta e acolhimento dentro de você. Permita que cada uma reverbere com leveza e profundidade:

  • Qual é a sua primeira lembrança de se sentir genuinamente amparado e protegido?

  • Em momentos difíceis, a quem ou a que lugar você recorre em busca de consolo? Quais características tornam essa presença reconfortante?

  • De que maneira você transmite segurança às pessoas que ama? Como você se torna um refúgio emocional para quem está ao seu redor?

  • Ao revisitar sua infância, como a existência (ou ausência) de uma base confiável influenciou sua forma de explorar o mundo e construir relações?


    Como um farol que guia em meio à escuridão, vínculos seguros iluminam nosso caminho emocional. Mesmo diante das tempestades, saber que existe um lugar de acolhimento nos permite seguir adiante com coragem e confiança.
Como um farol que guia em meio à escuridão, vínculos seguros iluminam nosso caminho emocional. Mesmo diante das tempestades, saber que existe um lugar de acolhimento nos permite seguir adiante com coragem e confiança.

Conclusão: Construindo Portos Seguros ao Longo da Vida

Retornamos à imagem do pequeno barco e seu porto seguro. A jornada do desenvolvimento humano, assim como a navegação em mar aberto, é marcada por ventos imprevisíveis, correntes profundas e momentos de calmaria. O apego seguro — construído na infância por meio de um cuidado sensível, presente e responsivo — não nos protege das tempestades, mas nos oferece a âncora da resiliência e a bússola da confiança.


Essa base afetiva nos permite explorar o mundo com coragem, sabendo que existe um lugar de amor e acolhimento para onde podemos sempre retornar. E mais do que isso: nos capacita a sermos esse lugar para os outros. Quando cultivamos vínculos seguros, não apenas fortalecemos nossas relações pessoais, mas também contribuímos para uma sociedade mais empática, justa e emocionalmente saudável.


Mas e aqueles que não tiveram acesso a esse porto seguro na infância? A boa notícia é que vínculos seguros podem ser construídos ao longo da vida. Relações significativas, terapias acolhedoras, amizades verdadeiras e até mesmo o autoconhecimento podem abrir caminhos para a reparação emocional. O cérebro é plástico, e o afeto — quando vivido com consistência e presença — tem o poder de reescrever narrativas internas. Criar segurança hoje é possível, e cada gesto de cuidado, cada vínculo construído com respeito e empatia, é uma oportunidade de cura e transformação.


O filme O Quarto de Jack (2015) ilustra com sensibilidade essa dinâmica. A história de uma mãe que, mesmo em condições extremas, constrói um universo de afeto e proteção para seu filho revela o poder transformador do vínculo materno como ferramenta de sobrevivência e crescimento. Para aprofundar essa reflexão, recomendamos o artigo do blog “Filme O Quarto de Jack: A Psicologia do Vínculo Materno como Ferramenta de Sobrevivência”, que explora os aspectos emocionais e psicológicos retratados na obra.


Que essas reflexões alcancem com delicadeza as camadas da nossa história, despertando memórias adormecidas, compreensões transformadoras e gestos renovados de cuidado — tanto no acolhimento de nós mesmos quanto na presença afetuosa com os outros.



Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master.
Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master.

Sobre a Autora

Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master.

Formada em Psicologia em 2005, Silvia reúne uma ampla gama de especializações que refletem sua busca incansável por conhecimento e transformação: Hipnose Clínica, Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia do Idoso, Psicologia do Luto, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Psicologia Transpessoal, Escrita Terapêutica, Terapias Quânticas e Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar, Apometria Clínica, Coaching.

 



Sua experiência de mais de 30 anos na área corporativa, somada ao MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e à Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, fortalece sua atuação como Coach Pessoal, integrando saberes da psicologia e da gestão para apoiar pessoas em seus processos de mudança, propósito e realização. Além disso, é escritora no Blog do Espaço Vida Integral, onde compartilha artigos, reflexões e conteúdos educativos voltados ao autoconhecimento, à espiritualidade e às práticas terapêuticas.

 

Contato

Instagram e Facebook: silviarocha.terapeuta

WhatsApp: (12) 98182-2495


Referências Bibliográficas

[1] Bowlby, J. (1969). Attachment and Loss, Vol. 1: Attachment. New York: Basic Books.

[2] Ainsworth, M. D. S., Blehar, M. C., Waters, E., & Wall, S. (1978).Patterns of Attachment: A Psychological Study of the Strange Situation. Hillsdale, NJ: Erlbaum.

[3] Winnicott, D. W. (1965).The Maturational Processes and the Facilitating Environment: Studies in the Theory of Emotional Development. London: Hogarth Press.

[4] Siegel, D. J. (1999).The Developing Mind: How Relationships and the Brain Interact to Shape Who We Are. New York: Guilford Press.

[5] Donoghue, E. (2010).Room. New York: Little, Brown and Company.

[6] Cyrulnik, B. (2004).Les Vilains Petits Canards. Paris: Odile Jacob.

 

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