Fibromialgia e Dor Crônica: A Alma em Estado de Alerta
- Silvia Rocha

 - 10 de out.
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Por: Silvia Rocha
"A dor é o megafone de Deus para um mundo ensurdecido." – C.S. Lewis [1]
A fibromialgia é uma síndrome de dor crônica que atinge milhões de pessoas no mundo, marcada por dores musculoesqueléticas difusas, fadiga intensa, distúrbios do sono e dificuldades cognitivas. Apesar de seus impactos profundos, trata-se de uma condição que permanece invisível aos olhos — e muitas vezes à compreensão — de quem está de fora.
Em uma sociedade que exalta produtividade e força aparente, viver com uma dor que não aparece em exames laboratoriais ou de imagem representa um desafio duplo: lidar com o sofrimento físico e enfrentar o julgamento silencioso da incompreensão. Mais do que uma condição médica, a fibromialgia revela uma dimensão emocional e psicológica que ainda é pouco explorada. Este artigo propõe uma abordagem interdisciplinar e integrativa para compreender as múltiplas camadas da fibromialgia, conectando ciência, saúde mental e vivência pessoal. Uma jornada que busca dar voz ao corpo — e à alma — que muitas vezes sofre em silêncio.

A Dor que Ninguém Vê: Breve Percurso da Fibromialgia
A fibromialgia percorre uma longa trajetória em busca de reconhecimento médico e social. Por séculos, relatos de dores difusas e fadiga foram ignorados ou atribuídos a distúrbios emocionais, especialmente entre mulheres — maioria dos casos. No século XIX, surgiu o termo “fibrosite” para descrever uma suposta inflamação dos tecidos fibrosos, sem comprovação clínica. Apenas em 1976 foi adotada a nomenclatura atual, e em 1990 o Colégio Americano de Reumatologia definiu os primeiros critérios de classificação, conferindo legitimidade à síndrome.
Apesar dos avanços, a ausência de marcadores biológicos específicos perpetua o estigma e a invisibilidade. Muitos pacientes enfrentam descrença, dificuldades no diagnóstico e acesso limitado a cuidados adequados. A dor que não se vê desafia os modelos biomédicos tradicionais, centrados em evidências objetivas, e exige uma abordagem mais empática, capaz de acolher a complexidade do sofrimento humano.
Estima-se que entre 2% e 3% da população brasileira conviva com fibromialgia — cerca de 6 milhões de pessoas [15]. A prevalência é maior entre mulheres, com até sete casos para cada homem [15]. Em escala global, a síndrome afeta de 2% a 5% da população, impactando mais de 160 milhões de pessoas [9]. Os sintomas incluem dores musculoesqueléticas generalizadas, fadiga, distúrbios do sono, rigidez matinal, alterações cognitivas e hipersensibilidade a estímulos como toque, som e temperatura. O diagnóstico é clínico, feito por exclusão, o que prolonga o sofrimento. Estudos apontam origem multifatorial, com alterações na forma como o sistema nervoso central processa os sinais de dor — fenômeno conhecido como sensibilização central [15].
Em julho de 2025, a Lei nº 15.176 reconheceu oficialmente a fibromialgia como deficiência no Brasil, ao lado da síndrome da fadiga crônica e da síndrome complexa de dor regional [14]. A legislação garante atendimento especializado pelo SUS a partir de janeiro de 2026, além de assegurar direitos legais e benefícios sociais [16]. Embora represente um avanço, ainda é necessário capacitar profissionais, ampliar o acesso a terapias multidisciplinares e promover uma escuta qualificada que legitime a dor, mesmo sem evidência visível.
Esses números revelam apenas parte do cenário. A jornada até o diagnóstico costuma ser longa e desgastante. Um estudo publicado na revista Mal-Estar e Subjetividade aponta que, para ser considerada crônica, a dor deve persistir por mais de quatro meses e atingir pelo menos 11 das 18 regiões de pontos sensíveis do corpo [10]. A falta de exames conclusivos faz com que muitos pacientes sintam que sua dor não é reconhecida, o que pode gerar profundo isolamento e sensação de incompreensão.
As Vozes da Ciência e da Alma: Desvendando as Raízes da Dor
A compreensão da fibromialgia exige um mergulho em diferentes saberes, que vão da neurociência à psicologia profunda. A condição é hoje entendida não como um problema localizado nos músculos, mas como uma desordem do processamento da dor no sistema nervoso central. Autores como Dr. David Hanscom apontam para a neuroplasticidade – a capacidade do cérebro de se reorganizar – como uma faca de dois gumes. Se por um lado o cérebro pode "aprender" a dor, criando circuitos neurais que a perpetuam mesmo na ausência de um estímulo inicial, por outro, ele também pode "desaprender" esse padrão através de intervenções terapêuticas [2].
Nessa perspectiva, a dor crônica é vista como um alarme de incêndio que não desliga, um sistema de alerta que se tornou hipersensível. É aqui que a dimensão emocional ganha um papel central. O Dr. Gabor Maté, em sua obra seminal "Quando o Corpo Diz Não", argumenta que muitas doenças crônicas, incluindo a fibromialgia, podem ser a manifestação física de traumas e estresses emocionais não processados [3]. O corpo, em sua sabedoria inata, grita aquilo que a mente consciente não consegue expressar. A dor se torna, então, uma linguagem, uma mensagem cifrada sobre feridas antigas e necessidades emocionais negligenciadas.
A conexão entre mente e corpo é também o pilar do trabalho do Dr. Jon Kabat-Zinn, que desenvolveu o programa de Redução de Estresse Baseada em Mindfulness (MBSR). Através da atenção plena, os pacientes aprendem a observar suas sensações, pensamentos e emoções sem julgamento, o que pode alterar a percepção da dor e reduzir o sofrimento associado a ela [4]. A Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva, psiquiatra brasileira, reforça a importância de se olhar para a fibromialgia sob a ótica da psicossomática, reconhecendo que o sofrimento psíquico frequentemente encontra no corpo um palco para se manifestar [5].
Essa visão integrativa é corroborada pela neurobiologia interpessoal do Dr. Daniel Siegel, que demonstra como nossas relações e experiências moldam nosso cérebro e, consequentemente, nossa saúde [6]. A sensação de isolamento e invalidação, tão comum em pacientes com fibromialgia, pode agravar o quadro, enquanto o acolhimento e a escuta empática se tornam ferramentas terapêuticas poderosas. A medicina integrativa, defendida por autoras como a Dra. Christiane Northrup, propõe exatamente essa abordagem, que une o rigor científico à sensibilidade para com a experiência integral do ser humano, especialmente da mulher, em seus ciclos e particularidades [7].

Cinco Reflexões sobre os Sinais do Corpo: Caminhos Terapêuticos para Compreender a Dor Crônica
Conviver com a fibromialgia é mais do que enfrentar sintomas físicos. É um convite à escuta profunda do corpo e das emoções. A dor crônica, muitas vezes invisível aos olhos clínicos, carrega mensagens que pedem reconhecimento, expressão e cuidado. A seguir, cinco reflexões que ajudam a decifrar esses sinais e apontam possibilidades terapêuticas integrativas:
1. A dor invisível: A ausência de evidências em exames não invalida o sofrimento. A escuta terapêutica, seja em contextos clínicos ou afetivos, é essencial para validar a experiência subjetiva da dor. Reconhecer o que não se vê é o primeiro passo para cuidar com sensibilidade.
2. Memórias corporais: Traumas, perdas e emoções intensas podem se inscrever no corpo, mesmo quando não verbalizados. A arteterapia oferece um espaço seguro para que essas memórias ganhem forma e cor, permitindo que o corpo se expresse sem a necessidade de palavras.
3. Emoções não expressas e adoecimento: A dificuldade em comunicar sentimentos, estabelecer limites ou pedir ajuda pode gerar tensão física. A escrita terapêutica é uma ferramenta potente para dar voz ao que está silenciado, promovendo alívio e autocompreensão.
4. Sobrecarga e vulnerabilidade: A sensação de exaustão, mesmo sem causa aparente, pode refletir um acúmulo de demandas internas e externas. A musicoterapia, ao acessar emoções por meio do som e do ritmo, ajuda a liberar tensões e restaurar o equilíbrio emocional.
5. Acolhimento e alívio: Momentos de escuta empática, expressão criativa e conexão afetiva contribuem para a redução dos sintomas. Práticas como arteterapia, escrita e música favorecem a reconstrução do vínculo com o próprio corpo, promovendo bem-estar e sentido.

Estudo de Caso: Um Olhar sobre Frida (2002)
O cinema, com sua capacidade de revelar as camadas mais profundas da alma humana, nos presenteia em Frida (2002) com uma cinebiografia vibrante e visualmente arrebatadora da artista mexicana Frida Kahlo. Dirigido por Julie Taymor e protagonizado por Salma Hayek, o filme constrói um mosaico emocional e estético da vida de Frida, entrelaçando sua trajetória pessoal com sua produção artística. A narrativa, marcada por elipses e recursos visuais intensos, revela como a dor física e emocional moldaram sua identidade e sua arte, transformando sofrimento em potência criativa [17].
Embora Frida Kahlo não tenha recebido um diagnóstico de fibromialgia, sua trajetória ecoa profundamente na vivência de quem enfrenta dores crônicas invisíveis. Após o grave acidente de ônibus aos 18 anos, Frida passou por inúmeras cirurgias e conviveu com dores intensas ao longo da vida. O filme retrata essa dimensão com sensibilidade, mostrando como sua luta não era apenas contra os limites do corpo, mas também contra a incompreensão social e médica que cercava sua condição [18]. Assim como os pacientes com fibromialgia, Frida enfrentava uma dor que não se via, mas que se manifestava em cada pincelada, em cada autorretrato que revelava não apenas o físico, mas o emocional dilacerado [19].
A direção de Taymor utiliza elementos visuais e sonoros para mergulhar o espectador no universo de Frida, com cenas que transbordam cor, intensidade e simbolismo. A arte torna-se, no filme, um canal de expressão e resistência, uma forma de reivindicar sua existência e de se reconectar com sua essência [20]. Seus quadros, muitas vezes perturbadores, são testemunhos da coragem de olhar para dentro, de enfrentar o abismo e de transformar o sofrimento em beleza. Essa capacidade de expressão é também uma via terapêutica para quem convive com a fibromialgia, onde práticas como a arteterapia e a escrita criativa podem abrir caminhos de cura e acolhimento [21].
A jornada de Frida, como retratada em Frida (2002), é um convite à autenticidade, à aceitação das imperfeições e à celebração da força que nasce da vulnerabilidade. Em um mundo que frequentemente exige máscaras de normalidade, sua história nos lembra que a dor não precisa ser escondida, e que há poder em se permitir sentir, criar e existir plenamente, mesmo em meio às tempestades internas [22].
Linha do Tempo de Frida Kahlo

Conclusão: A Dor como Convite à Escuta e à Reconexão
Querido leitor, querida leitora,
A fibromialgia vai além dos sintomas físicos. Ela revela a urgência de uma escuta sensível — capaz de reconhecer o sofrimento invisível que reverbera intensamente em quem convive com a dor crônica. O corpo, ao manifestar o que a mente silencia, torna-se mensageiro de emoções não elaboradas, histórias guardadas e limites ultrapassados. A dor, nesse contexto, transforma-se em linguagem — uma expressão que pede acolhimento.
A abordagem integrativa proposta aqui convida a ampliar o olhar. Mais do que tratar sintomas, trata-se de compreender o ser humano em sua totalidade: corpo, mente, afetos e relações. A ciência oferece caminhos, a arte abre espaços, e a escuta empática transforma. A neuroplasticidade mostra que é possível reaprender, e as práticas expressivas revelam potência na vulnerabilidade.
A Arteterapia permite que imagens internas ganhem forma e cor. A musicoterapia acessa memórias emocionais profundas, oferecendo ritmo ao que antes era ruído. E a escrita criativa transforma palavras em pontes entre dor e sentido, entre silêncio e escuta. A trajetória de Frida Kahlo, mesmo sem o diagnóstico de fibromialgia, simboliza a dor que vira arte, a fragilidade que se converte em força. Sua história inspira autenticidade, expressão criativa e coragem para existir com inteireza. Assim como Frida, muitas pessoas com dores invisíveis encontram na arte e na escuta afetiva caminhos para ressignificar o sofrimento e reconstruir o vínculo com o corpo.
Para aprofundar essa reflexão, recomendo o artigo “O Corpo no Trauma”, que propõe um olhar atento sobre como experiências emocionais se inscrevem fisicamente. A leitura convida à escuta integral e ao cuidado que reconhece o ser humano em sua complexidade. Afinal, como lembra C.S. Lewis, a dor pode ser um megafone — não para punir, mas para despertar. Despertar para o que precisa ser sentido, acolhido e transformado.
Um abraço, Silvia Rocha

Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master. Formada em Psicologia em 2005, Silvia reúne uma ampla gama de especializações que refletem sua busca incansável por conhecimento e transformação: Hipnose Clínica, Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia do Idoso, Psicologia do Luto, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Psicologia Transpessoal, Escrita Terapêutica, Terapias Quânticas e Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar, Apometria Clínica, Coaching.
Sua experiência de mais de 30 anos na área corporativa, somada ao MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e à Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, fortalece sua atuação como Coach Pessoal, integrando saberes da psicologia e da gestão para apoiar pessoas em seus processos de mudança, propósito e realização.
Além disso, é escritora no Blog do Espaço Vida Integral, onde compartilha artigos, reflexões e conteúdos educativos voltados ao autoconhecimento, à espiritualidade e às práticas terapêuticas.
Contato
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Referências Bibliográficas e Cinematográficas
[1] LEWIS, C.S. The Problem of Pain. HarperCollins, 2001.
[2] HANSCOM, David. Back in Control: A Surgeon's Roadmap Out of Chronic Pain. Vertus Press, 2016.
[3] MATÉ, Gabor. Quando o Corpo Diz Não: A Conexão entre Estresse e Doença. Editora Ideias de Ler, 2021.
[4] KABAT-ZINN, Jon. Viver a Catástrofe Total: Como Usar a Sabedoria do Corpo e da Mente para Enfrentar o Estresse, a Dor e a Doença. Editora Palas Athena, 2017.
[5] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes Inquietas: TDAH - Desatenção, Hiperatividade e Impulsividade. Editora Principium, 2014.
[6] SIEGEL, Daniel J. O Cérebro em Desenvolvimento: Como os Relacionamentos e a Biologia Interagem para Moldar o Nosso Ser. Editora Segmento, 2012.
[7] NORTHRUP, Christiane. Corpo de Mulher, Sabedoria de Mulher: Criando Saúde Física e Emocional. Editora Record, 2010.
[8] MINISTÉRIO DA SAÚDE. 9 verdades sobre a fibromialgia. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-com-ciencia/noticias/2025/fevereiro/9-verdades-sobre-a-fibromialgia. Acesso em: 10 out. 2025.
[9] QUEIROZ, L. P. Worldwide epidemiology of fibromyalgia. Current pain and headache reports, v. 17, n. 8, p. 356, 2013.
[10] SILVA, T. A. D.; RUMIM, C. R. A fibromialgia e a manifestação de sofrimento psíquico. Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 12, n. 3-4, p. 743-765, dez. 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482012000200012. Acesso em: 10 out. 2025.
[11] PENNEBAKER, James W. Opening Up by Writing It Down: How Expressive Writing Improves Health and Eases Emotional Pain. The Guilford Press, 2016.
[12] MALCHIODI, Cathy A. Trauma and Expressive Arts Therapy: Brain, Body, and Imagination in the Healing Process. The Guilford Press, 2020.
[13] PARA SEMPRE ALICE. Direção: Richard Glatzer e Wash Westmoreland. Produção: Killer Films, BSM Studio, Big Indie Pictures. Estados Unidos, 2014. (101 min).
[14] BRASIL. Lei nº 15.176, de 1º de julho de 2025. Reconhece a fibromialgia, a síndrome da fadiga crônica e a síndrome complexa de dor regional como deficiência. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 jul. 2025.
[15] SOCIEDADE BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA. Fibromialgia. Disponível em: https://www.reumatologia.org.br/doencas-reumaticas/fibromialgia/. . Acesso em: 10 out. 2025.
[16] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Fibromialgia será atendida pelo SUS como deficiência. Portal Gov.br, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2025/fibromialgia-sera-atendida-pelo-sus-como-deficiencia. . Acesso em: 10 out. 2025.
[17] TAYMOR, Julie (Direção). Frida. [Filme]. EUA: Miramax Films, 2002.
[18] HERRERA, Hayden. Frida: A Biography of Frida Kahlo. Nova York: HarperCollins, 2002.
[19] KETTENMANN, Andrea. Frida Kahlo: 1907–1954. Köln: Taschen, 2003.
[20] MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Screen, v. 16, n. 3, p. 6–18, 1975.
[21] MALCHIODI, Cathy A. Art Therapy Sourcebook. Nova York: McGraw-Hill, 2006.
[22] SCOTT, A. O. “Film Review: Frida Kahlo, as Complex as Her Art.” The New York Times, 25 out. 2002.





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