Filme "De Repente Uma Família": Psicanálise, Terapia Sistêmica e Constelações em Cena
- Silvia Rocha

 - 22 de set.
 - 6 min de leitura
 
Atualizado: 21 de out.
Por: Silvia Rocha
O filme "De Repente uma Família" (Instant Family, 2018), dirigido por Sean Anders, oferece uma perspectiva comovente e realista sobre os desafios e as recompensas da adoção tardia. Através da jornada de Pete (Mark Wahlberg) e Ellie (Rose Byrne), que decidem adotar três irmãos – Lizzie (Isabela Merced), Juan (Gustavo Quiroz) e Lita (Julianna Gamiz) –, a narrativa explora profundamente as complexidades emocionais envolvidas na formação de novos laços familiares. Esta análise se propõe a mergulhar nos aspectos psicológicos retratados no filme, utilizando conceitos de diversas abordagens teóricas para compreender as dinâmicas dos personagens e os fenômenos da adoção tardia.

Adoção Tardia: Um Olhar Psicológico
A adoção tardia, que envolve crianças e adolescentes com uma história de vida já estabelecida, frequentemente em instituições de acolhimento, apresenta desafios únicos tanto para os adotantes quanto para os adotados [1]. Como observado por Sousa e Burd (2021), esses jovens trazem consigo uma bagagem de experiências, muitas vezes traumáticas, que moldam sua percepção de si mesmos, do mundo e do futuro. O filme ilustra vividamente essa realidade através dos irmãos Wagner.
Os Desafios do Vínculo e do Apego
Um dos pilares da psicologia do desenvolvimento é a teoria do apego, inicialmente formulada por John Bowlby e aprofundada por Mary Ainsworth. Crianças que vivenciam a ruptura de vínculos primários ou a negligência podem desenvolver padrões de apego inseguro, o que dificulta a formação de novas relações de confiança [2]. Lizzie, a irmã mais velha, é um exemplo claro disso. Sua resistência inicial em aceitar Pete e Ellie como pais pode ser interpretada como uma defesa contra a dor de uma possível nova rejeição, um mecanismo de autoproteção comum em indivíduos que sofreram traumas de abandono. Ela verbaliza essa desconfiança ao dizer: "Vocês não me amam, nem me conhecem" [2].
Para Winnicott, a capacidade de uma mãe (ou cuidador) de ser "suficientemente boa" é crucial para o desenvolvimento saudável da criança. Pete e Ellie, embora bem-intencionados, enfrentam a dificuldade de atender às necessidades emocionais complexas de Lizzie, Juan e Lita, que vão além do cuidado físico. A frustração de Ellie, que se vê como uma "mãe imperfeita" e sente que seus esforços não são reconhecidos, reflete a pressão e a idealização que muitas vezes cercam a parentalidade, especialmente na adoção [2].
![A frustração de Ellie, que se vê como uma "mãe imperfeita" e sente que seus esforços não são reconhecidos, reflete a pressão e a idealização que muitas vezes cercam a parentalidade, especialmente na adoção [2].](https://static.wixstatic.com/media/69d738_55a1fa36b5fd4f8c947c78e5dd0f59d7~mv2.jpg/v1/fill/w_500,h_334,al_c,q_80,enc_avif,quality_auto/69d738_55a1fa36b5fd4f8c947c78e5dd0f59d7~mv2.jpg)
Trauma e Resiliência
As crianças em adoção tardia frequentemente carregam o peso de psicotraumas decorrentes de negligência, abuso ou abandono. Bessel van der Kolk, em sua obra "O Corpo Guarda as Marcas", destaca como o trauma afeta não apenas a mente, mas também o corpo, manifestando-se em comportamentos e reações emocionais [3]. Juan, com seus pesadelos e choro frequente, e Lita, com suas birras, exibem manifestações típicas de crianças que passaram por experiências adversas e que estão processando o trauma de maneiras distintas. A agressividade e a rebeldia de Lizzie também podem ser vistas como externalizações de sua dor interna e de sua dificuldade em lidar com a nova realidade.
No entanto, o filme também é um testemunho da resiliência humana. A capacidade das crianças de se adaptarem, mesmo que lentamente, e de Pete e Ellie de persistirem e aprenderem com seus erros, demonstra a força do espírito humano em superar adversidades. A terapia sistêmica, que foca nas interações e padrões de comunicação dentro da família, seria uma abordagem valiosa para ajudar essa nova unidade familiar a construir dinâmicas mais saudáveis e a curar as feridas do passado.
Preconceitos e Idealizações na Adoção
O filme aborda os preconceitos sociais em relação à adoção tardia. A família de Ellie, por exemplo, expressa alívio quando Pete e Ellie consideram desistir da adoção, revelando estereótipos negativos sobre crianças adotadas, como a crença de que "se tornarão viciadas ou criminosas" [2]. Essa cena destaca a importância da desmistificação e da educação sobre a adoção, um tema relevante em muitas sociedades, incluindo o Brasil, onde a adoção tardia ainda enfrenta barreiras significativas e a preferência por crianças mais novas e sem histórico de trauma é predominante [1].
Além disso, Pete e Ellie inicialmente idealizam a adoção, esperando uma "conexão cósmica" imediata. A realidade, no entanto, é muito mais complexa e exige paciência, amor incondicional e a capacidade de aceitar as crianças como elas são, com suas histórias e suas dores. Esse reajuste interno de expectativas é um processo psicológico crucial para os pais adotivos, que precisam alinhar suas projeções à realidade concreta da parentalidade adotiva.
Na Prática: Sinais para Observar
1 Dificuldade em Formar Vínculos: Observe se a criança ou adolescente demonstra resistência em aceitar carinho, evita contato visual ou expressa desconfiança em relação aos cuidadores, como Lizzie no início do filme.
2 Comportamentos Regressivos ou Agressivos: Birras intensas, choro excessivo, agressividade ou isolamento podem ser sinais de que a criança está processando traumas passados ou dificuldades de adaptação.
3 Idealização vs. Realidade: Pais adotivos podem se sentir frustrados se suas expectativas idealizadas de uma família perfeita não se concretizam. É importante reconhecer que a construção de laços leva tempo e esforço.
4 Busca por Apoio: A procura por grupos de apoio ou terapia familiar, como Pete e Ellie fizeram, é um sinal de força e um recurso valioso para lidar com os desafios da adoção.

De Repente Uma Família e os Vínculos que Curam
Ao refletir sobre De Repente Uma Família, somos convidados a enxergar a adoção não como um ato de caridade, mas como uma escolha consciente de amar. O filme revela, com delicadeza e honestidade, a beleza e a complexidade de construir uma família a partir do encontro — um encontro entre histórias, feridas, esperanças e afetos.
A narrativa nos lembra que o amor verdadeiro não se limita aos laços de sangue, mas nasce da presença constante, da escuta genuína e da capacidade de acolher o outro em sua totalidade — com suas luzes e suas sombras. A adoção tardia, embora repleta de desafios, é uma expressão profunda de coragem e entrega. É oferecer a crianças e adolescentes não apenas um lar, mas a possibilidade de reconstruir sua identidade em um espaço de pertencimento e afeto.
Como o filme tão bem ilustra, esse caminho exige paciência, flexibilidade e uma abertura amorosa para o inesperado. Mas quando vivido com consciência e respeito, pode levar a conexões transformadoras — daquelas que curam, que libertam, que reescrevem destinos.
💬 Se essa reflexão tocou você, convido à leitura do artigo completo: "Adoção Tardia de Irmãos: Trama Afetiva, Emaranhamentos e Reconstrução Psíquica" — uma análise sensível sob a ótica da psicanálise, da terapia sistêmica e das constelações familiares.
Que cada família formada pelo afeto encontre força para florescer, mesmo nas estações mais difíceis. Com carinho, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
Contato:
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Referências Bibliográficas
[1] Sousa, L. K., & Burd, A. C. S. J. (2021). DESAFIOS DA ADOÇÃO TARDIA: uma análise do filme De repente uma família. Faculdade Ciências da Vida. Disponível em: https://www.faculdadecienciasdavida.com.br/sig/www/openged/ensinoBibliotecaVirtual/000059_62476877b1fb7_049894_60fac97805e73_TCC_LARISSA_KELLY_DE_SOUSA_FIM.pdf
[2] Pinheiro, L. A., Souza, S. C., Souza, S. C., & Farias, R. R. S. (2021). Quando o abrigado recusa a adoção: a partir da análise do filme “De repente uma família”. Research, Society and Development, 10(16), e161101623404. Disponível em: https://rsdjournal.org/rsd/article/download/23404/20828/283759
[3] Van der Kolk, B. A. (2014). The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma. Viking. (Referência conceitual, não diretamente citada no texto, mas base para a discussão sobre trauma).




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