Adoção Tardia de Irmãos: Trama Afetiva, Emaranhamentos e Reconstrução Psíquica
- Silvia Rocha

- 22 de set.
- 6 min de leitura
Por: Silvia Rocha
A adoção representa um gesto de amor e esperança, capaz de redefinir trajetórias. Contudo, a adoção tardia de grupos de irmãos introduz uma camada adicional de complexidade, exigindo uma compreensão aprofundada das dinâmicas emocionais envolvidas. Não se trata apenas de integrar novas crianças a uma família, mas de acolher indivíduos que já possuem uma história de vida, vínculos preexistentes e, frequentemente, experiências de vulnerabilidade.
Este artigo busca explorar as nuances da adoção tardia de irmãos, utilizando os arcabouços teóricos da psicanálise e das constelações familiares para iluminar os desafios e as possibilidades de reconstrução psíquica. O objetivo é oferecer uma reflexão sobre como o reconhecimento da bagagem emocional desses irmãos é fundamental para a construção de um ambiente familiar que promova o pertencimento e o desenvolvimento saudável.

Adoção Tardia: O Legado das Histórias Vividas
Crianças e adolescentes que chegam à adoção em idade mais avançada não são tábulas rasas. Eles trazem consigo um repertório de vivências, memórias e relações que moldaram sua identidade e percepção de mundo [1]. A psicanálise enfatiza que a formação do psiquismo infantil é profundamente influenciada pelas primeiras interações e experiências de apego. Quando essas experiências são marcadas por rupturas, abandono ou negligência, o processo de vinculação com os pais adotivos demanda um tempo maior, escuta atenta e um trabalho de elaboração das perdas e traumas [2].
Estudos indicam que a adoção tardia, especialmente de grupos de irmãos, é um campo que ainda enfrenta muitos mitos e preconceitos, sendo um perfil menos procurado por potenciais pais adotivos [3, 4]. Os desafios incluem a adaptação a um novo ambiente, a gestão de comportamentos regressivos e a integração de histórias passadas na nova realidade familiar [5]. A abordagem psicanalítica vincular, por exemplo, sublinha a importância de preparar tanto as crianças quanto os pais para esse encontro, visando otimizar a formação de laços afetivos seguros e duradouros [6].
2. O Vínculo Fraterno: Entre o Refúgio e as Lealdades Inconscientes
Entre irmãos que compartilharam experiências de adversidade, o vínculo fraterno pode se tornar um porto seguro, uma estratégia de sobrevivência. Em situações de desamparo, é comum que um irmão assuma papéis de cuidado e proteção, funcionando como a principal fonte de segurança para o outro. A psicanálise interpreta essa dinâmica como um mecanismo de defesa contra a dor do abandono, uma forma de manter a integridade psíquica diante da ausência de figuras parentais adequadas [2].
No entanto, essa forte conexão, embora vital em momentos de crise, pode gerar lealdades invisíveis que, segundo Bert Hellinger e as Constelações Familiares, podem dificultar a plena integração dos irmãos na nova família adotiva [7]. Essas lealdades, muitas vezes inconscientes, podem manter os irmãos presos a padrões do sistema de origem, impedindo-os de se abrirem completamente para os novos afetos e para a possibilidade de serem simplesmente filhos. O trabalho terapêutico, nesse contexto, visa auxiliar esses irmãos a se desvencilharem desses papéis de “salvadores” mútuos, permitindo-lhes ocupar seu lugar legítimo como filhos na nova estrutura familiar [7].
3. Emaranhamentos Sistêmicos: O Eco dos Antepassados
A perspectiva das Constelações Familiares postula que cada indivíduo está intrinsecamente conectado ao seu sistema familiar de origem, mesmo que tenha sido afastado ou abandonado. No contexto da adoção tardia, os irmãos carregam consigo a memória e a influência simbólica de seus pais biológicos. A negação ou exclusão desses pais de origem, mesmo que inconsciente, pode manifestar-se em sintomas nos filhos adotivos, como agressividade, isolamento, sentimentos de culpa, dificuldades escolares ou somatizações [8].
O reconhecimento respeitoso dos pais biológicos é um passo fundamental para a liberação dos filhos adotivos. Isso não implica em desvalorizar os pais adotivos, mas em honrar a origem, permitindo que a criança se sinta completa e livre para estabelecer um vínculo profundo e saudável com a família que a acolhe. Bert Hellinger sugere que “A criança só pode se vincular plenamente quando os pais adotivos reconhecem com respeito os pais que vieram antes” [7]. Esse reconhecimento abre caminho para que o amor flua livremente e para que os emaranhamentos sistêmicos sejam desfeitos, promovendo a cura e a integração.

4. Adoção como Espelho: Revelando Dinâmicas Ocultas
Na prática clínica psicanalítica, é frequente observar que irmãos adotados juntos, ao interagirem no novo ambiente familiar, expressam através de seus comportamentos conflitos e dinâmicas não verbalizadas do sistema familiar de origem. Um irmão pode assumir o papel de “rebelde”, enquanto outro se torna “invisível” ou “pacificador”. Essas manifestações não são meramente individuais; elas são reflexos de histórias passadas que demandam escuta e compreensão [2].
As Constelações Familiares, nesse cenário, oferecem uma metodologia eficaz para desvelar essas dinâmicas ocultas. Ao trazer à consciência os padrões inconscientes e as lealdades que operam no sistema, essa abordagem facilita que cada criança encontre seu lugar de direito, tanto no sistema de origem quanto no adotivo. Esse processo de reconhecimento e reposicionamento é crucial para a saúde psíquica e para o desenvolvimento de uma identidade integrada e autêntica [7].
5. Caminhos Terapêuticos: Tecendo o Cuidado e o Pertencimento
A complexidade da adoção tardia de irmãos exige um suporte psicológico abrangente e multifacetado, que transcenda a abordagem individual. A intervenção terapêutica deve considerar a totalidade do sistema familiar e as necessidades específicas de cada membro. Entre as abordagens terapêuticas mais indicadas, destacam-se:
• Terapia Familiar Sistêmica: Essencial para reestruturar vínculos, papéis e hierarquias na nova família, promovendo uma comunicação mais eficaz e a construção de dinâmicas relacionais saudáveis.
• Psicoterapia Individual: Proporciona um espaço seguro para que cada irmão elabore seus traumas, perdas e lutos, fortalecendo sua identidade e autoestima.
• Constelações Familiares: Uma ferramenta valiosa para identificar e dissolver emaranhamentos sistêmicos, permitindo que o amor e o pertencimento fluam livremente.
• Orientação Parental: Fundamental para capacitar os pais adotivos a lidar com as expectativas, frustrações e a complexidade dos vínculos, oferecendo estratégias para um acolhimento eficaz e amoroso [2].

Conclusão: Acolher Histórias, Construir Pertencimento
A adoção tardia de irmãos é, inegavelmente, uma trama afetiva repleta de desafios, mas também de profunda beleza e recompensa. É um convite a acolher não apenas indivíduos, mas suas histórias, suas memórias e a complexa tapeçaria de suas relações. A psicanálise e as constelações familiares oferecem um valioso conjunto de ferramentas para desvendar os emaranhamentos, promover a cura das feridas e tecer novos laços de pertencimento.
Esse caminho de reconstrução afetiva exige paciência, empatia e um compromisso inabalável com o cuidado e a escuta. Ao reconhecer e honrar a história que precede a chegada desses irmãos, a família adotiva pavimenta o terreno para a reorganização psíquica e para a edificação de um futuro onde o amor e o pertencimento possam florescer plenamente.
Uma forma sensível de vivenciar essas reflexões é através do filme De Repente Uma Família (Instant Family, 2018), que retrata com emoção e realismo os dilemas, os vínculos e as alegrias da adoção tardia de três irmãos. A obra oferece uma representação tocante dos emaranhamentos familiares e da potência transformadora do acolhimento consciente.
Para uma análise mais aprofundada do filme sob a ótica da psicologia sistêmica e da psicanálise, convido à leitura do artigo complementar: "Filme De Repente Uma Família: Psicanálise, Terapia Sistêmica e Constelações em Cena".
Um abraço, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, graduada em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de vínculos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA pela FGV/RJ e Pós-Graduação pela FAAP/SP.
Contato: Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta
WhatsApp: (12) 98182-2495
Referências Bibliográficas
[1] Sampaio, D. S. (2018). Pedras no caminho da adoção tardia. Pepsic. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2018000100012
[2] Conteúdo anterior, escrito pela autora. Nota: Esta referência é mantida para indicar a origem da inspiração inicial, mas o texto foi completamente reescrito para evitar citações diretas.
[3] Brocanelo, A. (2022). O que é preciso saber sobre a adoção tardia e de grupos de irmãos. anabrocanelo.com.br. Disponível em: https://anabrocanelo.com.br/o-que-e-preciso-saber-sobre-a-adocao-tardia-e-de-grupos-de-irmaos/
[4] Souza, E. (2022). Adoção tardia no Brasil: uma análise a partir das contribuições… Seer UniAcademia. Disponível em: https://seer.uniacademia.edu.br/index.php/cadernospsicologia/article/viewFile/3170/2170
[5] Barros, J. F. (2021). Os Aspectos Psicológicos da Criança e do… Psicologia: Ciência e Profissão. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/RjXcmQPCGBqrVBRrP8C7BHz/?lang=pt
[6] Gomes, I. C. (2016). A psicanálise vincular e a preparação de crianças para… Pepsic. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-34822016000100010
[7] Raízes Instituto. Como a Adoção pode ser bem sucedida, aos olhos da Constelação Familiar Sistêmica. Disponível em: https://raizesinstituto.com.br/como-a-adocao-pode-ser-bem-sucedida-aos-olhos-da-constelacao-familiar-sistemica/
[8] Villa do Bem. Abortos e Adoções e seu impacto - Constelação Familiar. Disponível em: https://villadobem.com.br/abortos_adocoes/



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