Filme "O Brutalista": Reconstruindo Vínculos e Identidade em Meio ao Concreto
- Silvia Rocha

 - 3 de out.
 - 9 min de leitura
 
Por: Silvia Rocha
“Não sou o que me aconteceu, sou o que escolho me tornar.” [1]
— Carl Gustav Jung
Introdução: A Arquitetura da Psique Pós-Trauma
Em um mundo marcado por deslocamentos, rupturas e pela constante necessidade de reinvenção, a busca por identidade e pertencimento se torna uma jornada universal. O cinema, como espelho da condição humana, frequentemente nos oferece narrativas que exploram as profundezas da psique em meio a cenários de adversidade. O filme O Brutalista (2024), de Brady Corbet, emerge como uma poderosa metáfora visual e emocional sobre a reconstrução do self e dos vínculos familiares após a experiência devastadora do trauma. Através da história ficcional do arquiteto húngaro László Tóth, um sobrevivente do Holocausto que emigra para os Estados Unidos, o filme nos convida a uma análise profunda sobre como as feridas do passado se inscrevem na alma e como a arquitetura, em sua crueza e monumentalidade, pode simbolizar tanto a rigidez psíquica quanto a tentativa de edificar um novo sentido para a vida.
Este artigo propõe um mergulho na narrativa de O Brutalista sob a ótica da Psicologia Analítica e da Terapia Sistêmica. Analisaremos como os traumas migratórios e as rupturas nos sistemas familiares ecoam na vida dos personagens, explorando os padrões relacionais, os legados transgeracionais e os vínculos como elementos centrais na construção da identidade. A arquitetura brutalista, com sua estética de concreto aparente e formas imponentes, servirá como fio condutor para decifrar a expressão da psique fragmentada e a complexa jornada de cura e reconstrução emocional.

O Contexto Histórico e a Alma de Concreto: O Pós-Guerra e o Brutalismo
Para compreender a escolha estética e simbólica de O Brutalista, é fundamental situar o movimento arquitetônico que lhe dá nome. A arquitetura brutalista floresceu no período pós-Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir da década de 1950, como uma resposta à necessidade urgente de reconstrução das cidades europeias devastadas pelo conflito. O termo deriva do francês “béton brut”, que significa “concreto aparente”, um dos materiais centrais do estilo. Caracterizado por suas estruturas maciças, geométricas e pela ausência de ornamentos, o brutalismo buscava uma honestidade material, expondo as “entranhas” do edifício – suas vigas, pilares e instalações.
Longe de ser apenas uma solução funcional e de baixo custo, o brutalismo carregava uma forte carga ideológica e utópica. Representava uma tentativa de criar uma nova ordem social, rompendo com o passado e com a opulência da arquitetura burguesa. No entanto, com o tempo, essas estruturas monumentais passaram a ser associadas a uma estética fria, impessoal e até mesmo opressora, refletindo, talvez, a própria desilusão com as promessas de um futuro melhor. No filme, a paixão de László Tóth pelo brutalismo não é apenas uma preferência estilística; é a manifestação de sua própria condição psíquica. O concreto aparente, com suas texturas ásperas e sua aparência inacabada, espelha a alma de um homem que sobreviveu à brutalidade e que tenta, a partir de seus fragmentos, construir algo sólido e duradouro. A rigidez das formas arquitetônicas pode ser vista como uma defesa psíquica, uma carapaça contra a vulnerabilidade e a dor de um passado que insiste em não ser esquecido.
Fundamentos da Alma: A Psicologia Analítica e a Terapia Sistêmica em Diálogo no File "O Brutalista"
Para desvendar as camadas de significado em O Brutalista, recorremos a duas abordagens complementares: a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e a Terapia Sistêmica, com suas diversas vertentes. Ambas nos ajudam a compreender como o indivíduo se constitui em relação ao seu mundo interno e aos sistemas dos quais faz parte.
Carl Gustav Jung nos oferece o conceito de complexos autônomos, que são porções da personalidade que se dissociam da consciência após eventos traumáticos, funcionando como “personalidades dentro da personalidade” [2]. O trauma de László no Holocausto e sua subsequente jornada como imigrante criam profundas cisões em sua psique. Sua obsessão pela arquitetura e sua dificuldade em se conectar emocionalmente podem ser entendidas como manifestações desses complexos, que governam sua vida de forma tirânica. A cura, na perspectiva junguiana, não se dá pela simples ab-reação (a revivência do trauma), mas pela lenta e dolorosa reintegração dessas partes dissociadas à consciência, um processo que Jung chamou de individuação.
Por outro lado, a Terapia Sistêmica nos convida a olhar para além do indivíduo, compreendendo a família como um sistema interconectado, com padrões que se repetem ao longo das gerações. Autores como Murray Bowen e seu conceito de transmissão geracional nos ajudam a ver como os traumas não resolvidos dos pais são passados, consciente ou inconscientemente, para os filhos [3]. A mudez de Zsófia, a sobrinha de László, e a doença de sua esposa, Erzsébet, não são apenas tragédias individuais, mas sintomas que expressam o sofrimento de todo o sistema familiar. Ivan Boszormenyi-Nagy introduz a noção de lealdades invisíveis, compromissos não ditos que os membros da família assumem uns com os outros, muitas vezes em detrimento de seu próprio bem-estar [4]. László, ao tentar construir seu legado na América, pode estar, paradoxalmente, sendo leal a uma história de perdas e rupturas, repetindo padrões de isolamento e dor.

Estudo de Caso: A Família Tóth e a Construção de um Legado Traumático
A narrativa de O Brutalista nos apresenta um rico material para uma análise clínica e sistêmica. Cada personagem encarna uma faceta do trauma e da luta pela reconstrução:
• László Tóth (Adrien Brody): O protagonista é o arquétipo do sobrevivente. Sua genialidade como arquiteto é, ao mesmo tempo, sua força e sua prisão. A arquitetura brutalista é seu idioma, a única forma que ele encontra para expressar a dor e a fragmentação de sua alma. O Instituto Van Buren, seu grande projeto, torna-se uma projeção de seu mundo interno. Como revelado no epílogo, ele projeta no edifício os espaços dos campos de concentração, transformando a arquitetura em um ato de memória e, talvez, de vingança. Sua busca por sentido, no entanto, o leva a um estado de isolamento e a atos destrutivos, como o vício em heroína e a agressão ao amigo Gordon. Ele encarna a luta descrita por Viktor Frankl, que afirma que o homem pode encontrar sentido mesmo no sofrimento inevitável, mas essa busca é repleta de perigos e contradições [5].
• Erzsébet Tóth (Felicity Jones): A esposa de László representa o elo emocional e a consciência do sistema. Sua doença, a osteoporose, que a confina a uma cadeira de rodas, é uma poderosa metáfora da fragilidade e da “descalcificação” dos vínculos e da própria estrutura familiar. Enquanto László constrói para fora, com concreto e aço, Erzsébet se desfaz por dentro. Ela é a portadora do sofrimento não expresso do casal e da família, e sua corajosa confrontação com Harrison Van Buren no final é um ato de justiça relacional, uma tentativa de reequilibrar as contas de um sistema marcado pelo abuso e pela exploração.
• Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce): O mecenas americano é a figura do poder e da projeção. Ele representa a promessa do “sonho americano”, mas também sua face sombria: a exploração, a colonização emocional e o abuso. A relação entre ele e László é complexa, marcada por admiração, inveja e, finalmente, por uma violência devastadora. O ato de sodomia é o ponto de ruptura, a brutalidade final que expõe a verdadeira natureza da relação de poder entre eles, transformando o mecenas em predador e o artista em vítima.
• Zsófia (Raffey Cassidy): A sobrinha, que chega à América muda, é a expressão mais pura do trauma transgeracional. Seu silêncio é um sintoma da dor inominável que atravessou a família. A recuperação de sua fala e sua decisão de se mudar para Jerusalém representam um movimento de diferenciação do self, uma tentativa de romper com o legado traumático e construir uma nova história para si e para sua própria família, longe da América e da Europa.
Diálogo Interdisciplinar: A Casa Como Espelho da Alma
A relação entre espaço físico e espaço interno é um tema que fascina filósofos, artistas e psicólogos. O filósofo francês Gaston Bachelard, em sua obra A Poética do Espaço, explora como a casa é muito mais do que um abrigo físico; ela é um “instrumento de análise para a alma humana” [6]. Para Bachelard, a casa é o nosso primeiro universo, um cosmos que guarda nossas memórias, sonhos e devaneios. Cada cômodo, do porão ao sótão, tem uma ressonância psicológica.
Em O Brutalista, essa ideia é levada ao extremo. A arquitetura não é apenas um cenário, mas um personagem ativo, um espelho da psique de László. Seus edifícios são a materialização de sua dor, de sua memória fragmentada e de sua tentativa desesperada de dar forma ao caos. A casa, que para Bachelar é um espaço de intimidade e acolhimento, para László se torna um monumento à perda, um memorial de concreto que o aprisiona ao passado. A tensão entre a funcionalidade social de seus projetos e a integridade emocional de sua família ilustra o conflito central do filme: a impossibilidade de construir um lar verdadeiro quando as fundações da alma estão em ruínas.

Pontos para Reflexão: Sinais de um Sistema em Sofrimento
O filme nos oferece pistas para identificar quando um sistema familiar pode estar sofrendo os efeitos de traumas não resolvidos. Observemos cinco sinais que ecoam na narrativa e podem ressoar em nossas próprias vidas:
1 A rigidez como defesa: A fixação em estruturas rígidas, o perfeccionismo e o controle excessivo podem ser uma carapaça para proteger uma imensa vulnerabilidade interna.
2 O silêncio que grita: A dificuldade ou a incapacidade de expressar emoções e de falar sobre o passado pode indicar a presença de segredos e dores inomináveis que adoecem o sistema.
3 O sentimento de não-pertencimento: Frases como “não sou daqui” ou “não tenho raízes” revelam uma profunda ferida na identidade e na sensação de pertencimento, comum em histórias de migração e exílio.
4 A repetição de padrões: A tendência a se envolver em relações de abuso, a autossabotagem ou o isolamento podem ser lealdades invisíveis a padrões familiares destrutivos.
5 O corpo como palco: Doenças psicossomáticas, como a de Erzsébet, muitas vezes são a expressão física de um sofrimento emocional que não encontra outras vias para se manifestar.

Construir com Sentido: Lares para a Alma
Querido leitor, querida leitora,
Ao final da jornada de O Brutalista, somos convidados a refletir sobre as estruturas que erguemos — não apenas as físicas, mas também as emocionais. A história de László Tóth nos provoca a olhar para dentro e questionar: o que estamos construindo em nós? Quantas vezes, na tentativa de garantir segurança e permanência, acabamos por levantar muros que nos afastam do afeto, da vulnerabilidade e da vida que pulsa?
A verdadeira resiliência não está na rigidez do concreto, mas na delicadeza de integrar nossas fraturas. Transformar cicatrizes em pontes é um gesto de coragem e humanidade. É reconhecer que nossas dores também podem ser matéria-prima para vínculos mais profundos, para espaços internos onde o amor e o sentido possam habitar.
Reconhecer os legados que carregamos e as lealdades invisíveis que nos conduzem é um passo essencial para uma vida mais consciente. Que você possa olhar para suas “estruturas brutalistas” com ternura — não para destruí-las, mas para compreendê-las, acolhê-las e, quem sabe, transformá-las em lares para sua alma.
✨ Se essa leitura despertou algo em você, talvez seja hora de seguir explorando. Recomendo o livro: Em Busca de Sentido, de Viktor Frankl — um testemunho profundo sobre a capacidade humana de encontrar propósito mesmo nas situações mais extremas. E ainda, o artigo: "Os Impactos dos Grandes Desastres na Saúde Mental: Uma Análise Profunda da Resiliência Humana" — uma reflexão sobre como nossos espaços influenciam nossa psique, disponível aqui no blog.
Que nossa jornada de autoconhecimento seja sempre uma construção feita com afeto, coragem e propósito. Nós merecemos habitar um mundo interno onde há espaço para luz, vínculos e transformação.
Um abraço, Silvia Rocha

Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master.
Licenciada em Psicologia em 2005, Silvia reúne uma ampla gama de especializações que refletem sua busca incansável por conhecimento e transformação: Hipnose Clínica, Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia do Idoso, Psicologia do Luto, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Psicologia Transpessoal, Escrita Terapêutica, Terapias Quânticas e Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar, Apometria Clínica, Coaching.
Sua experiência de mais de 30 anos na área corporativa, somada ao MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e à Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, fortalece sua atuação como Coach Pessoal, integrando saberes da psicologia e da gestão para apoiar pessoas em seus processos de mudança, propósito e realização. Além disso, é escritora no Blog do Espaço Vida Integral, onde compartilha artigos, reflexões e conteúdos educativos voltados ao autoconhecimento, à espiritualidade e às práticas terapêuticas.
Contato
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WhatsApp: (12) 98182-2495
Referências Bibliográficas
[1] JUNG, C. G. (s.d.). Citado em diversas fontes, atribuição comum.
[2] JUNG, C. G. (2011a). A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes.
[3] BOWEN, M. (1991).De la familia al individuo: La diferenciación del sí mismo en el sistema familiar. Barcelona: Paidós.
[4] BOSZORMENYI-NAGY, I., & SPARK, G. (1983).Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu.[5] FRANKL, V. E. (2017).Em Busca de Sentido. Petrópolis: Vozes.
[6] BACHELARD, G. (2000).A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes.



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