top of page

Filme "Nise: O Coração da Loucura" — A Arte que Fala

Por: Silvia Rocha


"O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito." — Nise da Silveira [1]


O filme "Nise: O Coração da Loucura" (2015), dirigido por Roberto Berliner, oferece um olhar sensível e impactante sobre a trajetória da psiquiatra brasileira Nise da Silveira. A narrativa cinematográfica transporta o espectador para o Brasil dos anos 1940 e 1950, um período em que os tratamentos psiquiátricos eram marcados por métodos invasivos e desumanizadores, como eletrochoques, insulinoterapia e lobotomia.

Em meio a esse cenário, Nise da Silveira emerge como uma figura revolucionária, que desafiou as práticas convencionais e propôs uma abordagem terapêutica inovadora, centrada na expressão artística e no afeto. Este artigo busca analisar a relevância do filme ao retratar a luta de Nise pela humanização do tratamento psiquiátrico, destacando a importância de seu legado para a saúde mental e a sociedade contemporânea.


Nise da Silveira foi uma médica psiquiatra alagoana que atuou no Rio de Janeiro, no Centro Psiquiátrico Pedro II. Reconhecida por rejeitar métodos agressivos como eletrochoques e lobotomias, ela revolucionou o cuidado em saúde mental ao usar arte, afeto e escuta como ferramentas terapêuticas.
Nise da Silveira foi uma médica psiquiatra alagoana que atuou no Rio de Janeiro, no Centro Psiquiátrico Pedro II (também conhecido pelo nome do seu bairro, Engenho de Dentro). Reconhecida por rejeitar métodos agressivos como eletrochoques e lobotomias, ela revolucionou o cuidado em saúde mental ao usar arte, afeto e escuta como ferramentas terapêuticas.

O Labirinto da Razão: Psiquiatria no Brasil dos Anos 50

Nos anos 1950, a psiquiatria brasileira estava profundamente enraizada em uma abordagem asilar e custodial, influenciada por modelos europeus e norte-americanos que priorizavam o isolamento e a contenção de indivíduos considerados "loucos" [2]. Os hospitais psiquiátricos, muitas vezes superlotados e com condições precárias, eram verdadeiros depósitos humanos, onde a dignidade dos pacientes era frequentemente negligenciada. As terapias predominantes incluíam métodos agressivos como o eletrochoque, a insulinoterapia (indução de coma insulínico) e a lobotomia, procedimentos que visavam suprimir os sintomas da doença mental, mas que frequentemente resultavam em danos irreversíveis e na perda da identidade dos indivíduos [3].

Nesse contexto, a doença mental era vista como algo a ser erradicado ou controlado, e não como uma condição humana que demandava compreensão e cuidado. A sociedade, por sua vez, estigmatizava os portadores de transtornos mentais, marginalizando-os e reforçando a ideia de que deveriam ser mantidos afastados do convívio social. Foi contra essa lógica desumanizadora que Nise da Silveira se insurgiu, propondo uma revolução no tratamento psiquiátrico que ecoaria por décadas.


O Inconsciente Criativo: A Influência Junguiana no Cuidado

A abordagem terapêutica de Nise da Silveira encontrou sua principal fundamentação teórica na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung [4]. Jung, psiquiatra suíço e fundador dessa escola de pensamento, propôs uma compreensão profunda da psique humana, dividindo-a em consciente e inconsciente. Para ele, o inconsciente coletivo abrigava arquétipos universais e símbolos que se manifestavam em sonhos, mitos e, crucialmente para Nise, na expressão artística [5].

Nise da Silveira compreendeu que a arte não era apenas uma forma de distração para os pacientes, mas um caminho privilegiado para o inconsciente. Através da pintura, modelagem e outras formas de expressão criativa, os internos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro podiam projetar seus conflitos internos, traumas e fantasias, tornando-os visíveis e passíveis de elaboração. Essa perspectiva contrastava radicalmente com a psiquiatria organicista da época, que via a doença mental como um mero desarranjo cerebral a ser corrigido por meios físicos.

A influência junguiana também se manifestou na valorização dos símbolos e dos mandalas nas obras dos pacientes. Nise observou que muitos de seus pacientes produziam imagens circulares e simétricas, que Jung interpretava como representações arquetípicas da totalidade do self e do processo de individuação [6]. Essa compreensão simbólica permitiu a Nise e sua equipe uma leitura mais profunda do universo psíquico dos pacientes, oferecendo um caminho para a reintegração e a cura, em vez da mera supressão dos sintomas.

A Ciência da Sensibilidade: Evidências do Cuidado Humanizado

Apesar da psiquiatria tradicional da época de Nise da Silveira se apoiar em métodos considerados "científicos" como o eletrochoque e a lobotomia, a eficácia desses tratamentos era frequentemente questionável e acompanhada de severos efeitos colaterais. Em contraste, o trabalho pioneiro de Nise e as abordagens humanizadas que ela defendeu, embora inicialmente vistas com ceticismo, encontraram respaldo em estudos posteriores que demonstram os benefícios da arteterapia e do cuidado psicossocial [7].

A arteterapia, por exemplo, tem sido reconhecida por promover a expressão emocional, reduzir a ansiedade e a depressão, e melhorar a autoestima e a interação social em pacientes com transtornos mentais [8]. A inclusão de animais como coterapeutas, prática adotada por Nise, também se alinha com pesquisas que apontam para os efeitos positivos da interação humano-animal na redução do estresse e na promoção do bem-estar [9]. Esses dados reforçam a visão de Nise de que a cura não reside apenas na supressão de sintomas, mas na reintegração do indivíduo à sua plenitude humana.


Estudo de Caso - Filme Nise: O Coração da Loucura

O filme "Nise: O Coração da Loucura" serve como um poderoso estudo de caso ao dramatizar a implementação das ideias de Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro. A narrativa cinematográfica, com a atuação magistral de Glória Pires, ilustra vividamente o contraste entre os métodos desumanos da psiquiatria tradicional e a abordagem revolucionária de Nise. O filme destaca a chegada de Nise ao hospital, sua recusa em utilizar os tratamentos convencionais e a criação da Seção de Terapêutica Ocupacional, onde a arte se torna o principal instrumento de cura [10].

Através de personagens como Fernando Diniz, Carlos Pertuis e Emygdio de Barros, o filme humaniza os pacientes, mostrando suas dores, suas capacidades criativas e a transformação que a liberdade de expressão e o afeto proporcionam. A tela revela a beleza e a profundidade das obras de arte produzidas por esses indivíduos, que antes eram considerados incuráveis e sem esperança. A cena em que Nise apresenta as obras de seus pacientes a Carl Jung, que as reconhece como manifestações do inconsciente coletivo, é um momento crucial que valida a sua metodologia e a conecta com a fundamentação teórica junguiana [11].

O filme não apenas narra a história de Nise, mas também convida o espectador a refletir sobre a própria definição de loucura e sanidade, sobre a importância da empatia e do respeito à dignidade humana no tratamento de transtornos mentais. É uma obra que emociona e provoca, reforçando o legado de uma mulher que ousou enxergar a alma onde outros viam apenas a doença.


A arteterapia, por exemplo, tem sido reconhecida por promover a expressão emocional, reduzir a ansiedade e a depressão, e melhorar a autoestima e a interação social em pacientes com transtornos mentais
A arteterapia tem sido reconhecida por promover a expressão emocional, reduzir a ansiedade e a depressão, e melhorar a autoestima e a interação social em pacientes com transtornos mentais

Tecendo Saberes: O Diálogo Interdisciplinar do Cuidado

O trabalho de Nise da Silveira transcende as fronteiras da psiquiatria, estabelecendo um rico diálogo interdisciplinar com diversas áreas do conhecimento e da experiência humana. Sua abordagem integra elementos da arte, da psicologia analítica, da sociologia e até mesmo da espiritualidade, demonstrando que o cuidado integral do ser humano exige uma visão holística e multifacetada. A arte, em particular, emerge como uma linguagem universal capaz de expressar o inexprimível, permitindo que pacientes que não conseguiam se comunicar verbalmente encontrassem voz em suas criações [12]. Essa perspectiva interdisciplinar se manifesta em:

Arteterapia: Como ferramenta central para a expressão e elaboração de conteúdos inconscientes.

Psicologia Junguiana: Oferecendo um arcabouço teórico para a compreensão dos símbolos e arquétipos presentes nas obras dos pacientes.

Sociologia e Antropologia: Ao questionar as normas sociais que estigmatizam a loucura e ao propor a reintegração social dos indivíduos.

Neurociências: Embora Nise tenha se oposto a métodos invasivos, seu trabalho abriu caminho para uma compreensão mais profunda da relação entre cérebro, mente e emoção, valorizando a plasticidade cerebral e a capacidade de recuperação.

Filosofia e Ética: Ao defender a dignidade humana e o direito à liberdade e à expressão, mesmo em contextos de vulnerabilidade.

A visão de Nise da Silveira nos convida a romper com a fragmentação do saber, reconhecendo que a saúde mental é um fenômeno complexo que exige a colaboração de diferentes disciplinas para ser plenamente compreendido e cuidado.


O filme não apenas narra a história de Nise, mas também convida o espectador a refletir sobre a própria definição de loucura e sanidade, sobre a importância da empatia e do respeito à dignidade humana no tratamento de transtornos mentais.
O filme não apenas narra a história de Nise da Silveira, mas também convida o espectador a refletir sobre a própria definição de loucura e sanidade, sobre a importância da empatia e do respeito à dignidade humana no tratamento de transtornos mentais.

Quando a Loucura Encontra o Afeto

Querido leitor, querida leitora,

Ao atravessar os caminhos da escrita terapêutica e da escuta sensível, somos convidados a reconhecer que o cuidado verdadeiro nasce da coragem de acolher o outro em sua inteireza. Nesse percurso, a história de Nise da Silveira se impõe como farol. Ao recusar práticas violentas como eletrochoques e lobotomias, ela transformou profundamente o cuidado em saúde mental, introduzindo a arte, o afeto e a escuta como caminhos terapêuticos e formas legítimas de expressão subjetiva.

Sua postura ética e sua sensibilidade nos lembram que a loucura não é ausência de razão, mas excesso de mundo. Que a alma não se cura com contenção, mas com liberdade criativa. Que o silêncio de um paciente pode conter mais verdade do que mil diagnósticos. E que escrever — como pintar, modelar ou dançar — é também uma forma de existir com dignidade.

Que possamos, como Nise, desafiar os paradigmas que excluem, e cultivar espaços onde a subjetividade seja respeitada, onde a dor possa ser nomeada, e onde a beleza possa emergir mesmo nos territórios mais sombrios da experiência humana.

Para seguir refletindo sobre o poder da expressão criativa como caminho de cura, convido você a ler o artigo "Arteterapia: Como a Expressão Criativa Pode Curar", publicado aqui no blog.

Que a arte continue a ser um farol, iluminando os caminhos da alma e revelando a beleza que reside em cada coração.

Com carinho, Silvia Rocha


Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master.
Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master.

Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master. Formada em Psicologia em 2005, Silvia reúne uma ampla gama de especializações que refletem sua busca incansável por conhecimento e transformação: Hipnose Clínica, Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia do Idoso, Psicologia do Luto, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Psicologia Transpessoal, Escrita Terapêutica, Terapias Quânticas e Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar, Apometria Clínica, Coaching.



Sua experiência de mais de 30 anos na área corporativa, somada ao MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e à Pós Graduação em Negócios pela FAAP/SP, fortalece sua atuação como Coach Pessoal, integrando saberes da psicologia e da gestão para apoiar pessoas em seus processos de mudança, propósito e realização. Além disso, é escritora no Blog do Espaço Vida Integral, onde compartilha artigos, reflexões e conteúdos educativos voltados ao autoconhecimento, à espiritualidade e às práticas terapêuticas.


Contato

Instagram e Facebook: silviarocha.terapeuta

WhatsApp: (12) 98182-2495


Referências Bibliográficas e Cinematográficas

[1] Frases Inspiradoras de Nise da Silveira sobre Saúde Mental. Cenat Cursos. Disponível em: https://blog.cenatcursos.com.br/frases-de-nise-da-silveira-sobre saude-mental/ 

[2] Miranda-Sá Jr, L. S. Breve histórico da psiquiatria no Brasil: do período colonial aos anos 1960. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v. 29, n. 1, p. 10-17, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rprs/a/j8pC5pj4fDLZy7tG4QhvLGJ/?lang=pt 

[3] Nise da Silveira – Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nise_da_Silveira 

[4] Nise da Silveira: quem foi, biografia, carreira - Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/nise-da-silveira.htm 

[5] Uma Leitura Da Psicologia Analítica De Carl Gustav Jung Através Das Mandalas. Estudos Junguianos. Disponível em: https://estudosjunguianos.com.br/blog/arteterapia-junguiana-uma-leitura-da psicologia-analitica-de-carl-gustav-jung-1875-1961-atraves-das-mandalas/

[6] Nise da Silveira, Vida e Obra - Uma psiquiatra rebelde. CCMS. Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/uma-psiquiatra-rebelde.php 

[7] Arteterapia como dispositivo terapêutico em saúde mental. Scielo. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ape/a/9LVK4BKMMB5mrwXwjDbWgfh 

[8] A Arte como transformação: o impacto da Arteterapia na Saúde Mental. Hospital Santa Monica. Disponível em: https://hospitalsantamonica.com.br/a-arte-como transformacao-o-impacto-da-arteterapia-na-saude-mental/ 

[9] Nise da Silveira, Vida e Obra - Seção de Terapêutica Ocupacional. CCMS. Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/secao-de-terapeutica ocupacional.php 

[10] Nise - O Coração da Loucura - Filme 2015. AdoroCinema. Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-240724/ 

[11] Nise: O Coração da Loucura - Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nise:_O_Cora%C3%A7%C3%A3o_da_Loucura 

[12] A arteterapia em Jung e o seu potencial terapêutico como estratégia de intervenção humanizada no contexto escolar de jovens no ensino médio. RSD Journal. Disponível em: https://rsdjournal.org/rsd/article/download/24916/21841

[13] Silveira, N. da. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.

Comentários


  • Whatsapp
bottom of page