Filme "Insônia": Um Mergulho Psicológico na Culpa e no Trauma
- Silvia Rocha

- 24 de set.
- 7 min de leitura
Atualizado: 21 de out.
Por: Silvia Rocha
O cinema, em sua potência narrativa, frequentemente nos presenteia com obras que transcendem o mero entretenimento, convidando-nos a uma profunda reflexão sobre a complexidade da psique humana. “Insônia” (2002), dirigido pelo aclamado Christopher Nolan, é um desses filmes. Através de um thriller psicológico denso e atmosférico, somos guiados por uma jornada angustiante ao lado do detetive Will Dormer, interpretado magistralmente por Al Pacino, em uma investigação que se revela tanto externa quanto interna.
Neste artigo, proponho uma análise do filme sob a ótica da psicologia, explorando como a narrativa cinematográfica de Nolan ilustra de forma contundente os mecanismos do trauma, da culpa e da consequente desintegração psíquica. Através de um diálogo com conceitos da psicanálise, da psicologia analítica e de estudos contemporâneos sobre o trauma, buscaremos compreender as camadas mais profundas da experiência de Dormer e as ressonâncias que ela pode ter em nossas próprias vidas.

A Noite que Não Acaba: O Cenário como Metáfora da Psique
A escolha do Alasca, com seu sol da meia-noite, como cenário para a trama não é acidental. A ausência de escuridão, a impossibilidade de encontrar refúgio na noite, funciona como uma poderosa metáfora para o estado psíquico de Will Dormer. A luz constante e implacável espelha a vigilância incessante de sua consciência, a incapacidade de escapar dos fantasmas de seus atos. A insônia que o acomete não é apenas uma privação de sono, mas a manifestação somática de uma culpa que não pode ser silenciada.
O filme nos mostra como um evento traumático – no caso de Dormer, a morte acidental de seu parceiro – pode estilhaçar a percepção de si mesmo e do mundo. A partir desse ponto, a investigação do assassinato da jovem Kay Connell se entrelaça com a tentativa desesperada de Dormer de encobrir sua própria falha, mergulhando-o em um labirinto de mentiras e autoengano. É um retrato fiel de como a negação e a evitação, mecanismos de defesa primários, podem, a longo prazo, aprofundar ainda mais a ferida psíquica.
A Divisão da Alma: Trauma e Dissociação em "Insônia"
Do ponto de vista da psicologia do trauma, a jornada de Dormer pode ser compreendida através do conceito de dissociação. Como aponta o renomado psiquiatra Bessel van der Kolk em sua obra "O Corpo Guarda as Marcas", o trauma pode levar a uma fragmentação da personalidade. O filme ilustra essa divisão de forma brilhante. Vemos a "Parte Aparentemente Normal" (PAN) de Dormer, o detetive competente e respeitado, tentando manter o controle e seguir com a investigação. Ao mesmo tempo, a "Parte Emocional" (PE) emerge em flashbacks, pesadelos e na própria insônia, trazendo à tona a dor, o medo e a culpa insuportáveis.
Os dados epidemiológicos revelam a magnitude dessa problemática. No Brasil, estudos indicam que 1,6% da população da região metropolitana de São Paulo sofreu de estresse pós-traumático nos últimos 12 meses, enquanto 3,2% já vivenciaram essa condição ao longo da vida. Mais alarmante ainda é a relação entre trauma e distúrbios do sono: pesquisas internacionais demonstram que até 90% dos pacientes com TEPT relatam distúrbios do sono, sendo a insônia o sintoma mais comumente reportado.
Essa cisão interna é o que impede a integração da experiência traumática. Dormer não consegue construir uma narrativa coerente sobre o que aconteceu, e essa falha na simbolização o mantém aprisionado no ciclo do trauma. A culpa, nesse contexto, atua como um carrasco implacável. Diferente da vergonha, que muitas vezes se relaciona com a percepção do julgamento do outro, a culpa, como vemos em Dormer, é uma dívida impagável consigo mesmo, um sentimento de ter transgredido um código moral interno.
Você já se sentiu como Will Dormer?
Quantas vezes nos pegamos revivendo mentalmente situações em que acreditamos ter falhado? A experiência de Dormer, embora dramatizada pelo cinema, ecoa em muitas vidas reais. A incapacidade de "desligar" a mente, especialmente durante a noite, é um fenômeno que transcende as telas e encontra ressonância em consultórios psicológicos ao redor do mundo.
O Diálogo com a Sombra: A Relação entre Dormer e Finch
A relação que se estabelece entre o detetive e o assassino, Walter Finch (interpretado por Robin Williams), é um dos pontos altos da análise psicológica do filme. Finch, com sua calma perturbadora e sua inteligência manipuladora, funciona como um espelho sombrio para Dormer. Ele é a personificação da sombra junguiana, a parte de nós mesmos que reprimimos e negamos. Finch reconhece em Dormer a mesma capacidade para o erro, para a transgressão, e usa esse reconhecimento para criar um vínculo perverso.
Carl Jung, pioneiro da psicologia analítica, conceituou a sombra como o aspecto inconsciente da personalidade que o ego consciente não se identifica. No filme, essa dinâmica se manifesta de forma magistral: Finch representa tudo aquilo que Dormer teme ser ou se tornar. A chantagem psicológica exercida pelo assassino não se baseia apenas no conhecimento do acidente, mas na compreensão profunda de que ambos compartilham uma humanidade falha e imperfeita.
O que essa dinâmica desperta em você?
Observe como a narrativa nos convida a questionar nossos próprios julgamentos morais. Quantas vezes condenamos nos outros aquilo que mais tememos em nós mesmos? A genialidade de Nolan está em nos fazer simpatizar com Dormer, mesmo quando suas escolhas se tornam questionáveis, forçando-nos a confrontar nossa própria capacidade para o erro.
Esse jogo psicológico entre os dois personagens nos leva a questionar a natureza do bem e do mal. Nolan nos mostra que a linha que separa o "herói" do "vilão" é muito mais tênue do que gostaríamos de admitir. A jornada de Dormer é, em última análise, uma jornada de confronto com sua própria sombra, uma descida aos infernos de sua própria psique para, talvez, encontrar alguma forma de redenção.
Sinais para Observar: Quando a Culpa Tira o Sono
A trajetória de Will Dormer, embora extrema, pode funcionar como um espelho para refletir sobre os próprios processos internos. Em menor escala, é comum que a culpa por erros passados roube a paz e o sono. Alguns sinais podem indicar que esse peso emocional está presente:
Ruminação constante sobre erros passados: Pensamentos recorrentes sobre situações em que houve sensação de falha, acompanhados pela dificuldade de encontrar caminhos para o perdão pessoal.
Dificuldade para dormir ou sono agitado: Insônia ou sono fragmentado podem sinalizar que questões emocionais não resolvidas estão exigindo atenção.
Distanciamento emocional: Afastamento de pessoas queridas ou dificuldade em acessar as próprias emoções pode indicar um mecanismo de defesa diante da culpa.
Autocrítica excessiva: Julgamentos internos severos, muitas vezes mais duros do que aqueles dirigidos a qualquer outra pessoa.
Medo de ser “descoberto”: Sensação constante de que falhas e imperfeições estão prestes a ser reveladas, gerando tensão e insegurança.

Encontrando a Paz no Escuro
"Insônia" é um filme que nos lembra da importância de olharmos para nossas próprias sombras, de integrarmos nossas falhas e de buscarmos a reconciliação com nossa história. A jornada de Will Dormer nos ensina que a negação e a evitação são caminhos que apenas aprofundam o sofrimento. A verdadeira cura, como nos ensina a psicologia, passa pela aceitação, pela construção de uma narrativa honesta sobre quem somos e pelo perdão, tanto aos outros quanto a nós mesmos.
Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto e criador da logoterapia, nos ensina que mesmo nas experiências mais dolorosas podemos encontrar sentido. Para Frankl, a busca de significado é a motivação fundamental do ser humano, e é através dessa busca que podemos transformar o sofrimento em crescimento. Dormer, em sua jornada final, encontra uma forma de dar sentido ao seu erro: a verdade e a proteção da jovem detetive Ellie Burr.
Se houve identificação com a angústia de não conseguir "desligar" a mente, de ser assombrado por culpas e medos, é importante saber — com profunda empatia e respeito — que essa jornada não precisa ser enfrentada em solidão. Cada pessoa carrega suas próprias "insônias", seus próprios fantasmas que aparecem nas horas mais silenciosas. E isso jamais diminui o valor de alguém ou a sua merecida dose de afeto, cuidado e compaixão.
A busca por ajuda profissional é um ato de coragem extraordinária e um passo fundamental para encontrar a paz que tanto merece. Como exploro no artigo "Sono e Trauma: Interfaces entre Corpo, Alma e Sociedade", nossa mente é um mapa sagrado de nossas experiências, e aprender a escutá-la com gentileza é o primeiro passo para a cura.
Lembre-se, querido leitor, que mesmo nas noites mais longas e aparentemente sem fim, o amanhecer sempre chega. E quando chegar, você estará mais forte, mais sábio e mais compassivo consigo mesmo. Sua jornada de cura é única e preciosa, e merece ser honrada com paciência, amor e esperança.
Um abraço, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
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