Filme "Quem Somos Nós": Entre a Ciência e a Espiritualidade
- Silvia Rocha

 - 24 de set.
 - 7 min de leitura
 
Atualizado: 21 de out.
Por Silvia Rocha
Lançado em 2004, "What the Bleep Do We Know!?" (conhecido no Brasil como "Quem Somos Nós?") não é um filme comum. Trata-se de um híbrido provocador que mescla uma narrativa ficcional com entrevistas documentais, ousando conectar os pontos entre a física quântica, a neurociência e a espiritualidade. Na época de seu lançamento, gerou tanto fascínio quanto controvérsia, tornando-se um fenômeno cultural que convidava o público a questionar a própria natureza da realidade. Para além do debate sobre sua precisão científica, o filme oferece um material riquíssimo para uma análise psicológica profunda sobre a transformação da consciência.
Este artigo se propõe a mergulhar nas camadas terapêuticas do filme, utilizando a jornada de sua protagonista, Amanda, como um estudo de caso sobre como nossos padrões mentais e emocionais constroem o mundo que experienciamos. Deixando de lado a literalidade de suas teorias quânticas, vamos explorar o valor metafórico da obra como uma ferramenta para o autoconhecimento, abordando temas como a neuroplasticidade, o vício emocional e o poder de reescrever nossa própria história.

A Realidade é uma Ilusão? A Física Quântica como Metáfora da Psique
A premissa central do filme é audaciosa: "nós criamos a nossa própria realidade". Embora a comunidade científica tenha criticado a obra por simplificar e, por vezes, distorcer conceitos complexos no que ficou conhecido como "misticismo quântico", podemos extrair uma poderosa metáfora para o funcionamento da nossa psique. A ideia de que o observador influencia o observado, um dos princípios da física quântica, ecoa profundamente em conceitos psicológicos consolidados.
Nossa realidade é, em grande parte, subjetiva. Ela é filtrada e construída por nossos esquemas cognitivos – as crenças e pressupostos que formamos ao longo da vida, como descrito por teóricos como Jean Piaget e Aaron Beck. O filme ilustra isso de forma brilhante: se acreditamos que o mundo é um lugar hostil, tenderemos a perceber e reagir a eventos de forma a confirmar essa crença. O físico e filósofo Fritjof Capra, em sua obra "O Tao da Física", já explorava os paralelos entre a física moderna e o misticismo oriental, sugerindo que a ciência estava, de certa forma, redescobrindo sabedorias antigas sobre a interconexão e a natureza fluida da realidade. Portanto, mais do que um documentário científico, "What the Bleep!?" pode ser visto como um convite para nos tornarmos observadores conscientes de nossa própria mente, o primeiro passo para a transformação da consciência.
O Vício Emocional: Por que Repetimos Padrões Destrutivos?
Um dos conceitos mais impactantes e terapeuticamente relevantes do filme é o de "vício emocional". A narrativa acompanha a jornada de Amanda (Marlee Matlin), uma fotógrafa que, após um divórcio doloroso, vive presa em um ciclo de ansiedade, raiva e autodepreciação. O filme postula que o cérebro, ao produzir repetidamente os neuropeptídeos correspondentes a um estado emocional, faz com que as células do corpo se tornem "viciadas" naquela química específica. Inconscientemente, a pessoa passa a recriar situações que lhe permitam sentir aquela emoção familiar, mesmo que seja dolorosa.
Essa ideia, embora apresentada de forma simplificada, dialoga diretamente com teorias psicológicas fundamentais:
• Compulsão à Repetição (Sigmund Freud): Freud observou a tendência humana de repetir padrões de comportamento e situações traumáticas, numa tentativa inconsciente de dominar a experiência original. O "vício emocional" do filme pode ser entendido como a face neurobiológica dessa compulsão.
• Neuroplasticidade: A ciência moderna confirma que "neurônios que disparam juntos, permanecem conectados". Como detalha Norman Doidge em "O Cérebro que se Transforma", pensamentos e emoções repetidos fortalecem certas vias neurais, tornando esses padrões automáticos e difíceis de mudar. O filme visualiza esse processo, mostrando como Amanda está presa em "autoestradas" neurais de negatividade.
• O Corpo Guarda as Marcas (Bessel van der Kolk): O renomado psiquiatra especialista em trauma, Bessel van der Kolk, demonstra em sua obra que o trauma não é apenas uma memória, mas uma impressão fisiológica que altera o corpo e o cérebro. O corpo de Amanda está, literalmente, viciado no estresse e na infelicidade, um conceito que ressoa com a ideia de que o corpo se torna a mente inconsciente.
A Jornada de Amanda: O Despertar da Consciência em Ação
A personagem Amanda é o coração emocional do filme e o veículo através do qual as ideias abstratas se tornam uma experiência vivida. Sua jornada de fotógrafa apática e ansiosa a uma mulher que começa a interagir com a realidade de forma lúdica e criativa é um belo exemplo do processo de individuação descrito por Carl Gustav Jung. Inicialmente, Amanda está desconectada de si mesma, vivendo no piloto automático de suas reações emocionais. Ela é um exemplo clássico de alguém cuja Sombra – a parte de nós que reprimimos e não reconhecemos – está no controle.
O ponto de virada ocorre quando ela começa a questionar suas próprias percepções. A cena em que ela desenha em seu corpo e se permite brincar com sua imagem é simbólica: ela está, literalmente, reescrevendo a narrativa sobre si mesma. Este é o início da transformação da consciência. Ao se permitir sentir novas emoções e pensar novos pensamentos, ela começa a criar novas vias neurais, enfraquecendo o vício em sofrimento. Sua jornada nos mostra que a mudança não é um evento único, mas um processo contínuo de observação, questionamento e escolha consciente. É o trabalho de integrar a Sombra e se abrir para o Self, o centro organizador da psique que busca a totalidade.
Sinais para Observar: Reflexões que o Filme Pode Despertar
Assistir a "What the Bleep Do We Know!?" com um olhar terapêutico pode ser um catalisador para profundas reflexões pessoais. Aqui estão alguns sinais e questionamentos para observar em sua própria vida, inspirados pela jornada de Amanda:
1 Você está viciado em alguma emoção? Observe seus padrões emocionais diários. Existe um sentimento recorrente (raiva, tristeza, ansiedade, vitimização) que parece dominar suas experiências, mesmo quando não há um gatilho externo óbvio? Você se pega, como Amanda, ruminando sobre as mesmas histórias dolorosas do passado? Este pode ser um sinal de um "vício emocional" em ação.
2 Como você descreve sua realidade? Preste atenção à linguagem que você usa para descrever sua vida, seu trabalho, seus relacionamentos e a si mesmo. Suas palavras refletem um mundo de possibilidades ou um de limitações? A mudança na percepção de Amanda começou quando ela ousou questionar a realidade que tomava como absoluta.
3 Você se permite "não saber"? O título do filme é uma pergunta, não uma afirmação. A jornada de transformação muitas vezes começa quando abrimos mão da necessidade de ter todas as respostas e nos permitimos entrar no campo do mistério e da possibilidade. Você se sente confortável com a incerteza ou busca certezas a todo custo para se sentir seguro?
4 Seu corpo e sua mente estão em diálogo? Amanda vivia em uma dissociação, com sua mente presa no passado e seu corpo expressando o estresse através da tensão e da apatia. A cura começa quando ela passa a habitar seu corpo de forma consciente. Como está a sua relação com seu corpo? Você o escuta? Ou o trata como um mero veículo para carregar sua cabeça?

Conclusão: Você é o Autor da Sua Realidade?
Sei que mergulhar nessas questões pode ser, ao mesmo tempo, desconcertante e maravilhosamente libertador. A jornada de Amanda em "What the Bleep Do We Know!?" é um espelho poderoso para a nossa própria capacidade de transformação. O filme nos lembra, de forma poética e provocadora, que não somos vítimas passivas das circunstâncias, mas co-criadores ativos da nossa experiência de vida.
Acreditar que podemos mudar, que nossos pensamentos e emoções têm o poder de esculpir nosso cérebro e nosso corpo, é o passo mais revolucionário que podemos dar em direção à cura e à plenitude. Que possamos nos inspirar a observar nossos mundos internos com mais curiosidade e compaixão, ousando perguntar: "E se eu pudesse criar uma nova realidade, a partir de agora?". A resposta, como o filme sugere, pode ser mais surpreendente e mágica do que imaginamos.
Se você se interessou pela conexão entre a mente, o cérebro e a espiritualidade, e deseja aprofundar nas bases biológicas do despertar da consciência, convido você a ler nosso artigo: "A Glândula Pineal e os Comportamentos Esperados no Despertar da Consciência".
Um abraço, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
Contato
Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta
WhatsApp: (12) 98182-2495
Referência Bibliográfica
[1] Wikipedia. (2004). What the Bleep Do We Know!? https://en.wikipedia.org/wiki/What_the_Bleep_Do_We_Know!%3F
[2] Capra, F. (1975). O Tao da Física. Editora Cultrix.
[3] Freud, S. (1920). Além do Princípio do Prazer. Editora Imago.
[4] Doidge, N. (2007). O Cérebro que se Transforma. Editora Record.
[5] Van der Kolk, B. (2014). O Corpo Guarda as Marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Editora Sextante.
[6] Jung, C. G. (2011). Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Editora Vozes.
[7] Beck, A. T. (1976). Cognitive Therapy and the Emotional Disorders. International Universities Press.
[8] Piaget, J. (1977). O Desenvolvimento do Pensamento: Equilibração das estruturas cognitivas. Editora Zahar.



Comentários