Filme "A Vida é Bela": Amor e Resiliência em Tempos de Adversidade
- Silvia Rocha

 - 3 de out.
 - 10 min de leitura
 
Por: Silvia Rocha
"Quem tem um 'porquê' para viver, pode suportar quase qualquer 'como'."
– Friedrich Nietzsche [1].
Em um mundo que frequentemente nos confronta com a fragilidade da existência, o cinema emerge como um espelho da alma, um campo fértil para a reflexão sobre a condição humana. Poucas obras cinematográficas capturam a complexa dança entre a dor e a esperança com a maestria de "A Vida é Bela" (La Vita è Bella, 1997), do diretor e ator Roberto Benigni. O filme, que atravessa gerações com sua mensagem pungente, transcende a narrativa histórica do Holocausto para nos oferecer uma profunda lição sobre a resiliência emocional, os vínculos afetivos como escudos protetores e os engenhosos mecanismos de proteção psíquica que a mente humana é capaz de criar diante do trauma.
Este artigo propõe uma análise psicológica, simbólica e sociológica da jornada de Guido Orefice, um pai judeu que, ao ser levado para um campo de concentração com seu filho Giosuè, transforma a mais brutal das realidades em um elaborado jogo. Através de uma abordagem que integra a sensibilidade poética à profundidade teórica, exploraremos como o filme dialoga com conceitos fundamentais da psicologia, como a Logoterapia de Viktor Frankl, a teoria do espaço transicional de Winnicott e os mecanismos de defesa psicanalíticos. Ao mergulhar nas camadas clínicas e existenciais da obra, buscamos compreender como a fantasia, o humor e a busca por um sentido podem se tornar as mais potentes ferramentas de sobrevivência da psique.

Jogos da Alma: Resiliência e Defesa Emocional em Tempos de Guerra
"A Vida é Bela" se desenrola em dois atos dramaticamente distintos. O primeiro, banhado em cores quentes e uma atmosfera de comédia romântica, nos apresenta Guido, um homem de espírito vibrante e contagiante, em sua chegada a Arezzo, na Itália, em 1939. É o período que antecede a Segunda Guerra Mundial, mas as sombras do fascismo já se projetam sobre a sociedade. Guido, com seu humor e criatividade inesgotáveis, conquista o amor de Dora e constrói uma família. Este primeiro momento do filme é crucial, pois estabelece a força do vínculo e a essência do personagem, que se tornará a base para a sua resistência futura.
O segundo ato nos lança abruptamente na escuridão. Com a ocupação nazista, a família é separada. Guido e seu filho Giosuè, por serem judeus, são deportados para um campo de concentração. Dora, mesmo não sendo judia, em um ato de amor e rebeldia, exige ser levada no mesmo trem. A paleta de cores do filme muda drasticamente para tons de cinza e ocre, e o que era leveza se transforma em um silêncio pesado, que comunica o horror sem a necessidade de palavras explícitas. É neste cenário de desumanização que a genialidade protetora de Guido se manifesta. Para blindar a psique de Giosuè da realidade traumática, ele cria uma narrativa paralela: a de que ambos estão participando de um jogo complexo, cujo prêmio final é um tanque de guerra de verdade. Cada regra do campo, cada ato de crueldade, é traduzido por Guido em uma regra do jogo, uma tarefa a ser cumprida para acumular pontos.
Esta construção narrativa é um ato de sublimação, um dos mais sofisticados mecanismos de defesa descritos por Sigmund Freud. A sublimação consiste no redirecionamento de impulsos ou energias psíquicas para fins socialmente aceitos e criativos [2]. Guido não nega a realidade para si, mas a transforma, canalizando a energia pulsional do horror em uma atividade criativa e protetora. Ele cria um "como se", um universo simbólico que permite a Giosuè atravessar o inferno sem que sua inocência seja aniquilada.
Escudos Invisíveis: A Sublimação como Estratégia de Sobrevivência Psíquica
A estratégia de Guido pode ser compreendida através de diversas lentes teóricas que iluminam a capacidade humana de resistir e encontrar sentido em meio ao caos. A narrativa do jogo, mais do que um simples engano, constitui um espaço psíquico de sobrevivência.
O Espaço Transicional de Winnicott
O psicanalista inglês Donald Winnicott introduziu o conceito de espaço transicional, uma área intermediária de experiência entre a realidade interna (psíquica) e a realidade externa (compartilhada). É no espaço do brincar que a criança aprende a diferenciar o "eu" do "não-eu", a lidar com a frustração e a desenvolver a criatividade. Guido, de forma intuitiva e genial, cria para Giosuè um potente espaço transicional. O campo de concentração é a realidade externa brutal, mas o "jogo" é a realidade intermediária que permite a Giosuè processar os eventos sem ser aniquilado por eles. Como afirma Winnicott, o brincar é universal e pertence à saúde: "É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação" [3]. Guido utiliza a fantasia não como fuga, mas como uma ponte que permite ao filho manter-se psiquicamente vivo.
A Busca por Sentido na Logoterapia de Frankl
A conduta de Guido ecoa diretamente os princípios da Logoterapia, abordagem psicoterapêutica desenvolvida por Viktor Frankl, ele mesmo um sobrevivente de Auschwitz. Frankl postula que a motivação primária do ser humano não é a busca pelo prazer (como em Freud) ou pelo poder (como em Adler), mas a busca por um sentido para a vida. Em sua obra seminal, "Em Busca de Sentido", ele relata:
"Pode-se tirar tudo de um homem, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas - escolher sua atitude em um determinado conjunto de circunstâncias, escolher o próprio caminho." [4]
Guido, confrontado com a perda de toda a liberdade externa, exerce a sua liberdade interior. Ele encontra um sentido inabalável para sua existência: proteger a vida e a integridade psíquica de seu filho. Essa meta se torna sua força motriz, sua razão para suportar o insuportável. A resiliência, na perspectiva frankliana, não é apenas a capacidade de suportar, mas a capacidade de transformar o sofrimento em uma realização, encontrando um propósito mesmo nas condições mais adversas. A resiliência, portanto, "torna-se uma das conseqüências de se encontrar o sentido da vida e movimentar-se para realizá-lo, permitindo dizer um 'sim' à vida apesar de tudo" [5].

O Trauma Inscrito no Corpo
Autores contemporâneos como Bessel van der Kolk e Gabor Maté têm aprofundado a compreensão sobre como o trauma se inscreve não apenas na mente, mas também no corpo. Em "O Corpo Guarda as Marcas", van der Kolk explica que experiências traumáticas alteram o cérebro e o sistema nervoso, deixando a pessoa em um estado constante de alerta ou entorpecimento [6]. Gabor Maté, por sua vez, destaca como, para manter vínculos de apego essenciais à sobrevivência, a criança aprende a suprimir seus sentimentos e necessidades, desconectando-se de si mesma [7].
O "jogo" de Guido atua como um regulador emocional para Giosuè. Ao transformar o medo em um desafio lúdico e a obediência forçada em uma estratégia para ganhar pontos, ele ajuda a modular as respostas do sistema nervoso do filho, prevenindo que o trauma se instale de forma avassaladora em seu corpo e em sua memória somática. Ele protege não apenas a mente, mas a integridade psicossomática da criança.

Estudo de Caso: O Testemunho de Viktor Frankl
Para compreender a profundidade da resiliência humana retratada em "A Vida é Bela", é fundamental olharmos para um caso real que espelha, em um contexto clínico e espiritual, a jornada de Guido. A história pessoal de Viktor Frankl (1905-1997), o psiquiatra austríaco que sobreviveu a quatro campos de concentração, incluindo Auschwitz, serve como um testemunho visceral da capacidade humana de encontrar sentido em meio à mais extrema desumanização.
Frankl, prisioneiro número 119.104, vivenciou na pele a perda de tudo o que lhe era caro: sua família, sua profissão, sua identidade. No entanto, foi nesse cenário de aniquilação que ele pôde observar, tanto em si mesmo quanto nos outros prisioneiros, o que diferenciava aqueles que sucumbiam dos que, apesar de tudo, mantinham uma centelha de esperança. A conclusão de Frankl foi clara: os que sobreviviam eram aqueles que se apegavam a um sentido, a um "porquê" para viver. Para alguns, era a esperança de reencontrar um ente querido; para outros, uma obra a ser concluída; para Frankl, era o desejo de reconstruir seu manuscrito sobre a Logoterapia, que havia sido confiscado.
O paralelo simbólico com a conduta de Guido é direto e poderoso. Enquanto Frankl encontrou seu sentido na tarefa intelectual e no testemunho futuro, Guido encontra o seu na tarefa afetiva e na proteção imediata. Ambos utilizam o autodistanciamento, uma capacidade genuinamente humana, propiciada pelo humor e pela autocompreensão, que permite ao indivíduo distanciar-se da situação e de si mesmo, observando-se com certa objetividade. Guido ri de si mesmo, transforma guardas nazistas em personagens de uma gincana e, com isso, cria uma distância psíquica do horror que o impede de ser consumido por ele. Ele demonstra que, mesmo quando o corpo está aprisionado, o espírito pode permanecer livre.
Sementes de Reflexão: Cinco Sinais para Observar na Alma
O filme, como um espelho, nos convida a uma profunda introspecção sobre nossas próprias vidas e capacidades. Deixo aqui cinco pontos para reflexão, sementes para cultivar no jardim da alma:
A Fantasia como Arquiteta da Realidade: De que forma usamos nossas narrativas internas para construir ou desconstruir a realidade que nos cerca? Onde reside a fronteira entre a proteção e a negação?
A Inocência como Território Sagrado: Num mundo adulto, frequentemente marcado pelo cinismo e pela hostilidade, como podemos cultivar e proteger a inocência — não como sinônimo de ingenuidade, mas como a capacidade de enxergar a vida com encantamento e esperança?
O Humor como Alquimia da Dor: Qual o papel do humor em nossas vidas? Conseguimos usá-lo como uma ferramenta para regular nossas emoções e encontrar leveza mesmo em contextos de sofrimento?
O Vínculo como Bússola Existencial: Nossas escolhas diárias refletem a priorização dos vínculos afetivos? O amor tem sido a bússola que norteia nossas decisões mais difíceis?
A Esperança como Ato de Rebeldia: Em cenários de desumanização pessoal ou coletiva, como podemos cultivar a esperança, não como uma espera passiva, mas como um ato de resistência e afirmação da vida?

A Vida É Bela, Quando Feita de Amor, Afeto e Sentido
Querido leitor, querida leitora,
Chegar até este ponto da leitura talvez revele que algo em você foi tocado — pela ternura de Guido, pela inocência de Giosuè, ou pela força silenciosa que atravessa o filme A Vida é Bela. Mais do que uma obra cinematográfica, essa história é um convite delicado e profundo para reconhecermos que, mesmo em meio ao caos, ainda é possível criar beleza. Mesmo quando tudo parece ruir, podemos escolher os fios com que bordamos nossa existência.
Guido não ignora a dor — ele a transforma. Constrói pontes entre o absurdo e o afeto, entre o medo e a imaginação. Sua trajetória nos ensina que resiliência não é endurecer, mas manter o coração aberto. É acender uma vela na escuridão e confiar que sua luz pode iluminar não apenas o próprio caminho, mas também o de quem caminha ao nosso lado.
Todos nós, em algum momento, enfrentamos nossos próprios campos de batalha internos — traumas, perdas, angústias que nos desafiam a encontrar sentido. E é justamente nesse espaço que a vida revela sua beleza: na escolha de transformar dor em potência, medo em movimento, silêncio em escuta. Que o amor seja sempre o nosso “porquê” — a força que nos permite atravessar qualquer “como”.
Se essa reflexão despertou algo em você, convido a seguir explorando esse olhar por meio de obras que ampliam e aprofundam essa sensibilidade:
Revisite o filme A Vida é Bela (1997), de Roberto Benigni. Mergulhe nas camadas dessa narrativa que entrelaça humor, dor e ternura com maestria. Cada cena é um convite à empatia, à imaginação e à coragem de amar, mesmo quando tudo parece perdido.
Leia Em Busca de Sentido, de Viktor E. Frankl. Um testemunho poderoso de quem viveu o horror dos campos de concentração e, ainda assim, encontrou propósito. Frankl nos mostra que o sentido não é algo pronto — é algo que se constrói, mesmo nas circunstâncias mais extremas.
Explore o artigo “Os Impactos dos Grandes Desastres na Saúde Mental: Uma Análise Profunda da Resiliência Humana”, disponível no link. O texto aprofunda como eventos traumáticos — sejam coletivos ou individuais — afetam nossa psique e nosso corpo, e como o cuidado emocional e a busca por sentido podem se tornar caminhos de reconstrução. Uma leitura sensível e esclarecedora para quem deseja compreender melhor os efeitos do trauma e os recursos internos que podem ser mobilizados para enfrentá-lo.
Que a vida que nos cabe bordar seja feita de escolhas conscientes, afetos cultivados e sentidos construídos com coragem e delicadeza. Que nunca nos falte poesia — mesmo nos dias cinzentos.
Com carinho, Silvia Rocha

Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master, com uma trajetória dedicada à promoção do bem-estar humano em suas múltiplas dimensões: bio-psico-social-espiritual.
Licenciada em Psicologia em 2005, Silvia reúne uma ampla gama de especializações que refletem sua busca incansável por conhecimento e transformação: Hipnose Clínica, Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia do Idoso, Psicologia do Luto, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Psicologia Transpessoal, Escrita Terapêutica, Terapias Quânticas e Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar, Apometria Clínica, Coaching.
Sua experiência de mais de 30 anos na área corporativa, somada ao MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e à Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, fortalece sua atuação como Coach Pessoal, integrando saberes da psicologia e da gestão para apoiar pessoas em seus processos de mudança, propósito e realização. Além disso, é escritora no Blog do Espaço Vida Integral, onde compartilha artigos, reflexões e conteúdos educativos voltados ao autoconhecimento, à espiritualidade e às práticas terapêuticas.
Contato
Instagram e Facebook: silviarocha.terapeuta
WhatsApp: (12) 98182-2495
Referências Bibliográficas
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[2] FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. In: Obras Completas, vol. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[3] WINNICOTT, Donald Woods. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
[4] FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes, 2017.
[5] SILVEIRA, Daniel Rocha; MAHFOUD, Miguel. Contribuições de Viktor Emil Frankl ao conceito de resiliência. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 25, n. 4, p. 567-576, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/estpsi/a/D9RkbqqjmZy3d7ZJKDsGx7J/?lang=pt. Acesso em: 02 out. 2025.
[6] VAN DER KOLK, Bessel A. O Corpo Guarda as Marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
[7] MATÉ, Gabor. O Mito do Normal: Trauma, doença e cura numa cultura tóxica. Lisboa: Lua de Papel, 2023.
[8] A VIDA É BELA. Direção: Roberto Benigni. Produção: Gianluigi Braschi, Elda Ferri. Itália: Melampo Cinematografica, 1997. 1 filme (116 min).
[9] ROCHA, Silvia. O Corpo no Trauma. Blog Espaço Vida Integral. Disponível em: https://www.espacovidaintegral.com.br/blog/o-corpo-no-trauma. Acesso em: 02 out. 2025.



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