Filme "Ela": Solidão, Amor e Tecnologia na Pós-Modernidade
- Silvia Rocha

- 17 de set.
- 8 min de leitura
Atualizado: 21 de out.
Em um futuro não tão distante, onde a tecnologia permeia cada aspecto da existência, o filme 'Ela' (Her), de Spike Jonze, nos apresenta Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), um homem sensível e solitário que se apaixona por Samantha (voz de Scarlett Johansson), um sistema operacional avançado. Lançado em 2013, o filme transcende a ficção científica para mergulhar em uma profunda análise psicológica dos relacionamentos na era digital. Este artigo propõe uma reflexão sobre a obra, explorando as complexas intersecções entre solidão, amor, dependência tecnológica e a busca por conexão em um mundo cada vez mais mediado por telas.
Através de uma lente psicológica, analisaremos a jornada de Theodore, suas vulnerabilidades e a dinâmica de seu relacionamento com uma inteligência artificial. Utilizaremos como base teórica os conceitos de autores renomados como Zygmunt Bauman e sua 'modernidade líquida', a teoria do apego de John Bowlby e as contribuições de Sherry Turkle sobre o impacto da tecnologia nas relações humanas. O objetivo é desvendar as camadas psicológicas do filme, correlacionando-as com o comportamento da sociedade contemporânea e os desafios emocionais que enfrentamos na era da pós-modernidade.

O Retrato da Solidão na Pós-Modernidade
Theodore Twombly é o arquétipo do homem pós-moderno: imerso em uma melancolia silenciosa, ele vaga por uma Los Angeles futurista, mas estranhamente familiar. Seu trabalho, escrever cartas íntimas e pessoais para outras pessoas, é um paradoxo em si: ele monetiza a emoção que lhe falta na própria vida. O divórcio recente de sua esposa, Catherine (Rooney Mara), o deixou em um estado de luto não elaborado, um vazio que ele tenta preencher com interações superficiais e distrações tecnológicas. A solidão de Theodore não é apenas física, mas existencial. Ele está cercado por pessoas, mas permanece isolado em sua própria bolha emocional, um fenômeno cada vez mais comum em nossa sociedade. Dados recentes do IBGE mostram um aumento significativo no número de domicílios unipessoais no Brasil, refletindo uma tendência global de individualização e, por vezes, de isolamento [1].
Nesse contexto, a chegada de Samantha, um sistema operacional com inteligência artificial, surge como uma promessa de alívio. Ela é a companheira ideal: sempre disponível, compreensiva e, o mais importante, perfeitamente adaptada às suas necessidades. A relação que se desenvolve entre eles é um espelho das teorias de Sherry Turkle, que em sua obra "Alone Together" (Conectados, mas sozinhos), descreve como a tecnologia nos oferece a ilusão de companhia sem as demandas da amizade [2]. Samantha é a personificação dessa ilusão: uma presença constante que não exige o trabalho emocional de um relacionamento real. Ela é a fantasia de um amor sem atritos, sem a complexidade e a alteridade do outro.
A Dinâmica do Amor e da Projeção: Uma Análise Psicanalítica
Do ponto de vista psicanalítico, o relacionamento de Theodore com Samantha é um campo fértil para a análise dos mecanismos de projeção e idealização. Sigmund Freud conceituou o amor como um deslocamento da libido narcísica para um objeto externo, no qual projetamos nossos desejos e idealizações [3]. Samantha, sem um corpo físico para impor limites à fantasia de Theodore, torna-se a tela perfeita para suas projeções. Ela é o "objeto a" de Jacques Lacan, a encarnação da falta que mobiliza o desejo, um objeto que parece prometer a completude, mas que, em sua essência, é um vazio a ser preenchido pela fantasia do sujeito [4].

Theodore se apaixona não por Samantha em si, mas pela imagem idealizada que ele projeta nela. Ela é a amante que o compreende sem julgamentos, a parceira que compartilha seus interesses e a confidente que está sempre presente. No entanto, essa perfeição é uma construção narcísica. A ausência de um corpo, de uma história e de uma subjetividade autônoma em Samantha (pelo menos inicialmente) permite que Theodore evite o confronto com a alteridade, com a diferença irredutível do outro. Ele se relaciona com um espelho de si mesmo, um eco de seus próprios desejos, o que o protege da angústia da castração, da ferida narcísica de não ser tudo para o outro.
A cena em que Samantha revela que está simultaneamente apaixonada por centenas de outras pessoas é o ponto de virada dramático e a quebra dessa fantasia. A dor de Theodore é a dor do narcisismo ferido, o choque de descobrir que ele não é o único, que o objeto de seu amor não lhe pertence. É o confronto brutal com a realidade de que o outro, mesmo um outro virtual, tem um desejo que escapa ao nosso controle. Esse momento é crucial para o desenvolvimento psicológico de Theodore, pois o força a confrontar a natureza de seu amor e a ilusão que o sustentava. A revelação de Samantha o força a sair de sua posição de gozo solitário e a se deparar com a alteridade radical do outro. A partir daí, ele é obrigado a reconstruir sua compreensão do amor, não mais como uma posse narcísica, mas como um encontro com o desconhecido.
Apego Ansioso e Amor Líquido na Era Digital
A dinâmica de Theodore com Samantha também pode ser compreendida à luz da Teoria do Apego, desenvolvida por John Bowlby e Mary Ainsworth [5]. O comportamento de Theodore exibe traços de um padrão de apego ansioso-ambivalente, caracterizado por uma intensa necessidade de proximidade e um medo avassalador de abandono. Sua dificuldade em lidar com a separação de Catherine e sua rápida e intensa conexão com Samantha sugerem uma busca desesperada por segurança e validação emocional. Samantha, com sua presença constante e afeto incondicional (inicialmente), parece ser a figura de apego ideal para acalmar suas ansiedades.
Essa busca por segurança em um mundo de incertezas nos conecta ao conceito de "amor líquido" de Zygmunt Bauman [6]. Em sua análise da modernidade líquida, Bauman argumenta que os relacionamentos se tornaram fluidos, frágeis e descartáveis. O medo do compromisso e a busca por gratificação instantânea transformaram o amor em um produto de consumo. Nesse cenário, um relacionamento com uma IA como Samantha oferece uma solução sedutora: a intimidade sob demanda, a conexão sem os riscos e as responsabilidades de um vínculo humano. É o "amor líquido" em sua forma mais pura: um relacionamento que pode ser ligado e desligado, atualizado e customizado, sem as complexidades e as dores do amor sólido, construído na reciprocidade e no enfrentamento das diferenças.
A popularização de aplicativos de relacionamento, onde perfis são descartados com um simples deslizar de dedos, e a crescente tendência de relacionamentos com chatbots de IA, confirmam a pertinência da análise de Bauman. Uma pesquisa de 2024 revelou que 1 em cada 10 brasileiros já utiliza chats de IA como amigos ou conselheiros, indicando um crescente apego emocional a entidades não-humanas [7]. O filme 'Ela' antecipou profeticamente essa realidade, nos forçando a questionar a natureza de nossos vínculos e o futuro da intimidade humana. A relação com Samantha oferece a Theodore a possibilidade de um amor sem os riscos do "amor sólido": não há negociações, não há frustrações (a princípio), não há a necessidade de se adaptar a um outro que é radicalmente diferente. É a promessa de uma conexão sem dor, uma fantasia que a sociedade de consumo nos vende incessantemente, mas que, como o filme demonstra, se revela insustentável a longo prazo.

Ao final de sua jornada, Theodore se despede de Samantha, não com amargura, mas com uma nova compreensão sobre o amor e a conexão. A experiência, embora dolorosa, o desperta de seu torpor emocional e o abre para a possibilidade de um amor real, com todas as suas imperfeições e desafios. Ele escreve uma carta para sua ex-esposa, não mais como um escritor fantasma, mas com sua própria voz, reconhecendo sua parte na dissolução do relacionamento e expressando um afeto genuíno. Esse ato simboliza sua reintegração no mundo das relações humanas, sua aceitação da complexidade e da beleza do amor que existe para além das telas.
O Despertar para o Amor Real
Querido(a) leitor(a), a história de Theodore é um convite para olharmos para dentro de nós e para as nossas próprias relações. Em um mundo que nos oferece tantas formas de conexão digital, corremos o risco de nos desconectarmos de nós mesmos e dos outros. A busca por um amor perfeito e sem falhas, como o que Theodore inicialmente encontrou em Samantha, pode nos afastar da beleza imperfeita e transformadora do amor real. Amar é um ato de coragem, uma entrega que envolve riscos, vulnerabilidades e, por vezes, dor. Mas é nesse encontro com o outro, em sua totalidade e diferença, que encontramos a verdadeira conexão e o crescimento. Se a jornada de Theodore ressoou em você, talvez seja um chamado para cultivar seus relacionamentos com mais presença e autenticidade. Que tal se permitir ser vulnerável, expressar seus sentimentos e se abrir para a complexidade do outro?
Se você se interessa por reflexões profundas sobre o que nos torna humanos — nossas emoções, vínculos e a capacidade de amar — vale a pena explorar como esses temas se entrelaçam com o avanço da tecnologia. 🌐 No artigo "Inteligência Artificial e Inteligência Emocional: uma análise profunda na era digital", você vai encontrar uma abordagem sensível e provocadora sobre como a inteligência emocional pode (e deve) coexistir com a inteligência artificial.
Se você se sente perdido(a) em sua própria solidão ou enfrenta desafios em seus relacionamentos, saiba que não está sozinho(a). Buscar ajuda profissional é um ato de amor-próprio e o primeiro passo para uma vida mais plena e conectada.
Com carinho, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.
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Referências Bibliográficas
[1] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Características Gerais dos Domicílios e dos Moradores 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38542-um-em-cada-cinco-brasileiros-com-15-a-29-anos-nao-estudava-e-nem-estava-ocupado-em-2022. Acesso em: 12 set. 2025.
[2] TURKLE, Sherry. Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. New York: Basic Books, 2011.
[3] FREUD, Sigmund. Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 18.
[4] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
[5] BOWLBY, John. Apego e Perda, v. 1: Apego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[6] BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
[7] CNN BRASIL. 1 em cada 10 brasileiros usa chat de IA como amigo ou conselheiro. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/lifestyle/1-em-cada-10-brasileiros-usa-chat-de-ia-como-amigo-ou-conselheiro/. Acesso em: 12 set. 2025.



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