Filme "O Advogado do Diabo": Livre-Arbítrio, Ambição e a Escolha Humana
- Silvia Rocha

 - 29 de set.
 - 7 min de leitura
 
Por: Silvia Rocha
Lançado em 1997 e dirigido por Taylor Hackford, O Advogado do Diabo é um thriller psicológico que transcende o entretenimento para se tornar um espelho inquietante da condição humana. Estrelado por Keanu Reeves como Kevin Lomax e Al Pacino como o enigmático John Milton, o filme mergulha em dilemas éticos, espirituais e psicológicos que desafiam o espectador a refletir sobre o verdadeiro significado do livre-arbítrio.
A narrativa se desenrola como uma parábola moderna, onde o sucesso profissional é o campo de batalha entre a consciência e a sedução do poder. O filme não apenas entretém — ele provoca, inquieta e convida à introspecção.

O que está em jogo: o livre-arbítrio como campo de batalha
O conceito de livre-arbítrio é o fio condutor da trama. Kevin Lomax (Keanu Reeves), um advogado brilhante e ambicioso, é seduzido por uma firma de advocacia em Nova York liderada por John Milton (Al Pacino) — que mais tarde revela ser o próprio Satanás. A proposta não é apenas profissional, mas existencial: até onde estamos dispostos a ir para alcançar o sucesso? E, sobretudo, quem está realmente fazendo as escolhas?
Milton não impõe ações; ele cria cenários. Essa nuance é essencial. Como bem pontua Viktor Frankl, “entre o estímulo e a resposta existe um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher a resposta. E nessa resposta reside o nosso crescimento e a nossa liberdade” [1]. A liberdade de escolha, no entanto, não é absoluta. Ela é condicionada por fatores internos e externos — desejos, medos, traumas, cultura, contexto social. O filme nos obriga a perguntar: será que escolhemos de forma livre ou somos guiados por forças invisíveis que moldam nossas decisões?
Livre-arbítrio sob a lente filosófica
Na filosofia, o livre-arbítrio é um dos temas mais debatidos. Para Immanuel Kant, a liberdade está na capacidade de agir segundo a razão, e não apenas por inclinações [2]. Já para Friedrich Nietzsche, o livre-arbítrio é uma ilusão confortável — uma invenção para justificar a culpa e a punição [3].
Jean-Paul Sartre, por outro lado, defende que o ser humano está “condenado à liberdade” — ou seja, não há desculpas: somos responsáveis por nossas escolhas, mesmo quando tentamos negá-las [4]. Essa perspectiva existencialista ecoa fortemente no arco de Kevin, que tenta justificar suas ações como fruto das circunstâncias, mas no fim é confrontado com a verdade de que ele sempre teve escolha.
Milton, como figura diabólica, representa o determinismo disfarçado de liberdade. Ele oferece opções, mas todas estão contaminadas por consequências destrutivas. O paradoxo é claro: quanto mais alternativas Kevin tem, menos livre ele parece ser.

Dinâmicas psicológicas: Ambição, narcisismo e dissociação
Kevin representa o arquétipo do herói corrompido. Sua trajetória revela traços de narcisismo funcional — aquele que se alimenta da validação externa para sustentar a autoestima. A ausência de limites éticos e a compulsão por vencer a qualquer custo indicam um padrão de dissociação emocional, onde o sucesso se sobrepõe à empatia e à escuta interna.
Mary Ann (Charlize Theron), sua esposa, vivencia um colapso psíquico que pode ser interpretado como um episódio de psicose reativa breve, desencadeada por um ambiente hostil e desumanizante. Sua deterioração mental é um grito silencioso contra a desconexão espiritual e afetiva que permeia o universo de Kevin. Segundo Gabor Maté, “a desconexão de si mesmo é a raiz de todo sofrimento emocional” [5]. O filme ilustra essa desconexão com precisão dolorosa.
O contexto sociológico: Nova York como metáfora do excesso
A cidade de Nova York, com seus arranha-céus e ritmo frenético, funciona como um personagem simbólico. Representa o culto ao sucesso, à aparência e à performance. Em sociedades ocidentais urbanizadas, como os Estados Unidos, o valor do indivíduo é frequentemente medido por sua produtividade — o que torna o livre-arbítrio uma ilusão condicionada por pressões externas.
A crítica à hipocrisia institucional, especialmente religiosa, é evidente. Milton ironiza os dogmas cristãos, questionando se as regras divinas são realmente libertadoras ou apenas instrumentos de controle. Essa provocação dialoga com a psicanálise freudiana, que vê a repressão como fonte de neuroses [6].
Espiritualidade e arquétipos: O Diabo como facilitador
Na perspectiva junguiana, o Diabo não é apenas o mal absoluto, mas um arquétipo que revela o lado sombrio da psique humana. Milton é o espelho da sombra de Kevin — aquele que oferece poder, mas exige a renúncia da alma.
A cena em que Milton diz: “Olhe, mas não toque; toque, mas não prove; prove, mas não engula...” é uma crítica feroz à contradição entre desejo e moralidade. Essa tensão é o cerne do livre-arbítrio: escolher entre o impulso e o princípio, entre o prazer e a ética. Carl Jung afirma que “não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a escuridão” [7]. Kevin precisa encarar sua sombra para recuperar sua liberdade.
Personagens e suas escolhas: um mergulho mais profundo
Kevin Lomax (Keanu Reeves): Sua jornada é marcada pela negação da responsabilidade. Ele acredita estar apenas seguindo oportunidades, mas ignora os sinais de alerta. Sua escolha final — o suicídio simbólico ao rejeitar o pacto — é um ato de redenção e afirmação do livre-arbítrio.
John Milton (Al Pacino): Como arquétipo do tentador, ele não força nada. Apenas oferece. Sua genialidade está em manipular desejos humanos, tornando a escolha uma armadilha. Ele representa o determinismo psicológico — a ideia de que somos previsíveis quando expostos a estímulos certos.
Mary Ann (Charlize Theron): É a personagem mais sensível e intuitiva. Sua deterioração revela o impacto das escolhas de Kevin sobre os vínculos afetivos. Ela representa a alma ferida que clama por autenticidade.
Alice Lomax (Judith Ivey): É a voz da consciência espiritual. Sua resistência à mudança e sua fé são contrapontos à ambição do filho. Ela simboliza a sabedoria ancestral que alerta, mas não impede.

Sinais para observar no filme:
Frases que revelam manipulação emocional: “Você nunca perdeu um caso, Kevin. Isso é talento ou escolha?”
Comportamentos de dissociação e negação da realidade: Kevin ignora os sinais de sofrimento da esposa.
Ambição desmedida como padrão de validação pessoal.
Presença de arquétipos espirituais: o Diabo como sombra, Mary Ann como alma ferida.
Dilemas éticos que desafiam a integridade: defesa de clientes culpados sem remorso.
Na prática: Reflexões que o filme "O Advogado do Diabo" pode despertar
Você está fazendo escolhas ou apenas reagindo às circunstâncias?
O sucesso que você busca está alinhado com seus valores?
Quais sinais de desconexão emocional você tem ignorado?
Existe alguém em sua vida que representa sua “sombra”?
Como você lida com a culpa e a responsabilidade pelas suas decisões?

A liberdade de escolher é também a coragem de renunciar
Querida leitora, querido leitor, ao assistir O Advogado do Diabo, somos provocados a refletir sobre o verdadeiro significado de escolher. O livre-arbítrio não se resume à liberdade de decidir entre alternativas — ele exige coragem para assumir as consequências, para renunciar ao que não escolhemos, e para sustentar a responsabilidade que vem com cada decisão.
Carl Jung nos lembra que “até você tornar o inconsciente consciente, ele dirigirá sua vida e você o chamará de destino”. Escolher, portanto, é também um processo de tornar-se consciente: de si, dos próprios valores, das sombras que nos habitam. Já Sartre nos alerta que “não escolher já é uma escolha” — e essa omissão, muitas vezes, é guiada pelo medo, pela pressão externa ou pela ilusão de que podemos escapar da responsabilidade.
Vivemos em uma cultura que valoriza o desempenho acima da essência, onde o sucesso é medido por métricas externas e não pela coerência interna. Nesse cenário, manter-se fiel à própria consciência é um ato de resistência. A liberdade de escolher é também a coragem de renunciar — ao aplauso fácil, à rota segura, àquilo que não nos representa.
A escuta interna, o cuidado com os vínculos e o apoio de espaços seguros de reflexão são caminhos para resgatar o poder pessoal e a integridade emocional. Escolher com consciência é um gesto de liberdade profunda — e também de amor próprio.
Se deseja explorar mais profundamente essa questão, o artigo “O Dilema da Escolha: Somos Realmente Livres?” está disponível no link e pode trazer novas perspectivas.
Com carinho, Silvia Rocha

Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, graduada em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de vínculos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.
Possui formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA pela FGV/RJ e Pós-Graduação pela FAAP/SP.
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Referências Bibliográficas
[1] FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. São Paulo: Vozes, 2008.
[2] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[3] NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[4] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Lisboa: Edições 70, 2007.
[5] MATÉ, Gabor. O mito do normal: trauma, doença e cura numa cultura tóxica. São Paulo: Sextante, 2022.


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