O Luto como Caminho de Cura e Ressignificação
- Silvia Rocha

- há 7 minutos
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O luto é uma das experiências humanas mais universais e, paradoxalmente, mais solitárias. Ele se manifesta como a resposta natural e profundamente pessoal à perda de algo ou alguém significativo. No entanto, a cultura contemporânea, muitas vezes, nos impulsiona a apressar o processo, a "superar" a dor como se fosse um obstáculo a ser removido, e não uma travessia a ser percorrida. Este artigo propõe uma visão do luto não como uma patologia a ser curada, mas como um caminho de cura e ressignificação, uma jornada que, embora marcada pela dor, carrega em si a potência transformadora do amor que permanece.
A dor psíquica da perda é o preço que pagamos por ter amado, e é justamente nesse amor que reside a chave para a elaboração e a transformação. Ao longo desta reflexão, ancorada nas perspectivas da psicologia existencial, humanista e da psicanálise contemporânea, convidamos o leitor a olhar para o luto como um processo ativo, que nos força a renegociar nossa identidade e nosso lugar no mundo, entre os fragmentos do que se foi e as possibilidades do que pode vir a ser.

O Luto como Processo, Não como Patologia
A primeira e mais importante distinção a ser feita é que o luto é uma resposta saudável à perda. Não é uma doença, mas um trabalho psíquico fundamental. A psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross [1], pioneira nos estudos sobre a morte e o morrer, ajudou a mapear as fases emocionais (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação) que, embora não sejam lineares, descrevem a complexidade da experiência.
Contudo, a visão contemporânea do luto, especialmente a partir da psicanálise e das abordagens humanistas, enfatiza que o foco não deve estar apenas no "desligamento" do objeto perdido, mas na reorganização do vínculo e na integração da perda na história de vida do indivíduo. O luto é, portanto, um processo dinâmico de adaptação.
A Perspectiva Existencial e a Busca por Sentido
Para a psicologia existencial, a perda confronta o indivíduo com as condições fundamentais da existência: a finitude, a solidão e a liberdade. O luto se torna um momento de crise de sentido. O que fazer com a vida que resta, agora que o pilar que a sustentava se foi?
Viktor Frankl [2], criador da Logoterapia, nos oferece uma luz poderosa nesse momento. Sobrevivente do Holocausto, ele observou que mesmo no sofrimento mais extremo, o ser humano pode encontrar um sentido. Frankl argumenta que o amor não se extingue com a morte, mas se eterniza na memória e na forma como a vida do outro influenciou a nossa.
"O que você vai fazer com esse amor que continua vivo dentro de você?" Essa pergunta, inspirada no pensamento de Frankl, é a grande virada do luto. O trabalho não é esquecer, mas sim honrar o amor e encontrar um novo propósito que incorpore a herança daquele que partiu. A ressignificação é a capacidade de transformar a dor em uma fonte de sentido, de crescimento e de ação no mundo.

A Abordagem Humanista: Acolhimento e Autocompaixão
Na perspectiva humanista, especialmente na Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers [3], o luto exige um ambiente de aceitação incondicional e escuta empática. O enlutado precisa de espaço para nomear a dor em sua totalidade, sem julgamentos ou a pressão de "ser forte".
O luto é a dor de um vínculo rompido no plano físico, mas que precisa ser reconfigurado no plano simbólico. A cura emocional passa pela permissão de sentir, de chorar e de expressar a raiva ou a culpa, reconhecendo que essas emoções são parte legítima da experiência humana. A autocompaixão se torna um recurso vital, permitindo que o indivíduo se trate com a mesma gentileza que dedicaria a um amigo em sofrimento.
A Poética da Perda: Soltar com Amor
A metáfora da travessia é central para entender o luto. É um caminho que não se pode evitar, mas que se pode escolher como percorrer. A dor da perda é a dor de ter que soltar o que se agarrava, mas o luto bem-sucedido nos ensina a soltar com amor.
A psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés [4], com sua sabedoria arquetípica, nos lembra que a vida é um ciclo de vida-morte-vida. A perda é uma "morte" que exige um mergulho no inconsciente, no território selvagem da alma, para que um renascimento possa ocorrer. "O amor na sua forma mais plena é uma série de mortes e renascimentos", disse Estés.
Soltar com amor significa reconhecer que o amor não estava apenas na presença física, mas está agora na memória, na influência e na transformação que a relação gerou. É um ato de profunda despedida que, paradoxalmente, fortalece o vínculo interno.

Estudo de Caso: Yūsuke e o Luto como Silêncio que Ecoa
O filme Drive My Car (2021), dirigido por Ryusuke Hamaguchi e inspirado em um conto de Haruki Murakami, oferece uma representação profunda e poética do luto masculino adulto. O protagonista, Yūsuke Kafuku, é um ator e diretor de teatro que vive há anos aprisionado na memória da esposa falecida. Seu luto é silencioso, contido, e se manifesta não apenas na ausência física da companheira, mas na impossibilidade de elaborar os segredos e silêncios que marcaram a relação.
Yūsuke não consegue falar sobre a dor, mas ela permeia cada gesto, cada ensaio, cada viagem no carro vermelho que se torna metáfora da travessia emocional. A presença da motorista Misaki, também marcada por perdas, cria um espaço de escuta e acolhimento que permite que o luto comece a se mover.
A seguir, observamos os sinais de um luto prolongado e os elementos terapêuticos que emergem ao longo da narrativa:
O arco de Yūsuke é uma travessia silenciosa que culmina na permissão para sentir. Ao compartilhar sua dor com Misaki, ele começa a soltar o peso da memória e a transformar o amor que permanece em impulso para seguir adiante. A peça que dirige, Tio Vânia, torna-se espelho de sua própria jornada: a aceitação da vida como ela é, com suas perdas, suas imperfeições e sua beleza resiliente.
Esse estudo de caso revela como o luto pode se cristalizar em formas sutis — no silêncio, na rotina, na arte — e como o encontro com o outro pode ser o catalisador para a cura. A escuta, o acolhimento e a possibilidade de nomear a dor são os primeiros passos para a ressignificação.
Sugestões Terapêuticas: O Luto como Caminho de Cura
Para aqueles que estão vivenciando o luto, é fundamental buscar apoio e ferramentas que facilitem essa travessia. O luto é um trabalho que não deve ser feito sozinho.

Conclusão: O Adeus como Ato de Amor e o Caminho de Volta para Si
O luto é, em sua essência, uma forma profunda de amor. Ele revela o valor do vínculo que existiu e a intensidade da ausência que se instala. A jornada do enlutado não é uma tentativa de esquecer, mas uma travessia emocional que transforma a dor em memória viva. Soltar com ternura a presença física é abrir espaço para que o afeto permaneça em forma simbólica, pulsando na lembrança e na identidade.
Nesse processo, não se trata de apagar o passado, mas de acolher o que permanece. A dor se transforma em saudade, e o vazio dá lugar a um território fértil de ressignificação. O luto é um reencontro com a própria essência, uma reconexão com a força interior e com a capacidade de amar mesmo diante da impermanência. Como afirma Verena Kast, o luto bem elaborado converte o vínculo perdido em presença interna que continua a nos nutrir.
A despedida consciente não representa ruptura, mas continuidade. O amor que parte é o mesmo que nos impulsiona a seguir, carregando o legado de quem se foi. A cura não apaga as marcas, mas nos ensina a olhá-las com respeito e reconhecer a coragem necessária para atravessar o abismo da perda. Joan Halifax nos lembra que a compaixão radical — voltada ao outro e a si mesmo — é essencial para enfrentar a dor com dignidade.
Transformar a dor exige entrega. O amor não desaparece com a morte; ele se reinventa. Torna-se base para novos significados, novas conexões e propósitos. A despedida física se converte em gesto simbólico, onde o que se solta não é o vínculo, mas a exigência da presença. O que permanece é a memória, o legado e a influência que moldam quem somos.
Como escreveu Cecília Meireles, há rostos que se perdem nos espelhos da ausência, mas há também os que renascem na profundidade da experiência. O luto é esse espelho quebrado que revela uma nova face — mais serena, mais sábia, mais inteira. A travessia da perda é, paradoxalmente, o caminho de volta para si. E nesse retorno, o amor que parecia ter partido se revela como a força que nos sustenta.
Para aprofundar a compreensão sobre o poder transformador do sentido diante da dor, vale conhecer a trajetória de Viktor Frankl, psiquiatra austríaco e criador da Logoterapia. Sobrevivente dos campos de concentração nazistas, Frankl desenvolveu uma abordagem terapêutica centrada na busca de propósito como força vital. Sua biografia revela como é possível encontrar significado mesmo nas circunstâncias mais extremas. Recomendo a leitura do artigo “Viktor Frankl: A Inabalável Busca por Sentido em Meio à Adversidade”, que oferece uma visão inspiradora sobre sua vida e legado.
Um abraço, Silvia Rocha

Silvia Rocha é Psicóloga (CRP 06/182727), Terapeuta Integrativa e Hipnoterapeuta Master, com uma trajetória profundamente dedicada à promoção do bem-estar humano em todas as suas dimensões: biológica, psicológica, social e espiritual.
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Referências Bibliográficas
[1] Kübler-Ross, E. (2017). Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes.
[2] Frankl, V. E. (2020).Em Busca de Sentido. Petrópolis: Vozes.
[3] Rogers, C. R. (2009).Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes.
[4] Estés, C. P. (2018).Mulheres que Correm com os Lobos. Rio de Janeiro: Rocco.
[5] Kast, V. (2018).O Luto: Fases e Chances do Processo. São Paulo: Summus.
[6] Halifax, J. (2018).Standing at the Edge: Finding Freedom Where Fear and Courage Meet. Flatiron Books.
[7] Meireles, C. (2017).Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.




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