top of page

As Ordens do Amor e o Impacto dos Emaranhados Familiares nos Relacionamentos

Por: Silvia Rocha


Nossa jornada pela vida é profundamente moldada pelas nossas relações mais primárias. A família, nosso primeiro núcleo social, atua como um campo energético e psíquico que nos influencia de maneiras que, muitas vezes, sequer compreendemos conscientemente. As dinâmicas que ali se estabelecem, os segredos guardados, os amores vividos e as dores silenciadas tecem uma complexa teia que reverbera em nossas escolhas, comportamentos e, especialmente, em nossos relacionamentos afetivos e familiares na vida adulta. É nesse cenário que a abordagem das Constelações Familiares, desenvolvida pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, surge como uma luz, revelando as forças ocultas que regem os sistemas familiares.

 

Hellinger, em suas observações, identificou leis naturais que atuam nos sistemas de relacionamento, as quais denominou “Ordens do Amor”. Longe de serem regras morais, são princípios sistêmicos que, quando violados, podem gerar “emaranhados” – complexos nós de destinos e emoções que se transmitem através das gerações, causando sofrimento e repetição de padrões. Este artigo propõe um mergulho profundo nas Ordens do Amor e da Ajuda, explorando o conceito de emaranhados familiares e seu profundo impacto nos relacionamentos de casal e nas dinâmicas familiares. Para tanto, faremos um diálogo com os dados da nossa sociedade atual e com as perspectivas de grandes escolas da psicologia, como a Psicanálise, a Psicologia Analítica e a Terapia Sistêmica Familiar, buscando uma compreensão ampla e integrativa deste fenômeno tão humano.


Ilustração de um emaranhado familiar, como uma árvore genealógica com nós
Longe de serem regras morais, os princípios sistêmicos, quando violados, podem gerar “emaranhados” – complexos "nós" de destinos e emoções que se transmitem através das gerações, causando sofrimento e repetição de padrões.

1. As Ordens do Amor de Bert Hellinger

Bert Hellinger (1), em seu vasto trabalho com famílias, percebeu que o amor, para florescer, precisa de ordem. Não uma ordem imposta, mas uma ordem que respeita as leis naturais dos sistemas. São três as Ordens do Amor, e a compreensão de cada uma delas é fundamental para desatar os nós que nos prendem a destinos difíceis.

 

Hierarquia (Ordem): A primeira lei refere-se ao tempo. Quem veio antes tem precedência sobre quem veio depois. Nossos pais vieram antes de nós, nossos avós antes deles. Essa ordem de chegada estabelece uma hierarquia natural que, quando respeitada, permite que o amor flua. Hellinger afirma que “a ordem precede o amor, e este só pode desenvolver-se dentro dela” (1). Quando um filho, por exemplo, se coloca em uma posição de “maior” que seus pais, tentando salvá-los ou julgá-los, ele viola essa ordem, assumindo um peso que não lhe pertence e, invariavelmente, fracassando em sua própria vida.

 

Equilíbrio (Dar e Tomar): A segunda lei rege as trocas nos relacionamentos, especialmente entre casais. Para que uma relação seja saudável, é preciso haver um equilíbrio constante entre o dar e o receber. Quando um parceiro apenas doa e o outro apenas recebe, a relação adoece. O que doa se sente esgotado e o que recebe, diminuído. A exceção a essa regra é a relação entre pais e filhos. Os pais dão a vida, e os filhos a recebem. A compensação dos filhos se dará quando eles passarem a vida adiante, para seus próprios filhos, ou a serviço de algo maior.

 

Pertencimento: A terceira e mais fundamental das ordens diz que todos os membros de um sistema familiar têm o igual direito de pertencer. Ninguém pode ser excluído, independentemente de seus atos ou destino. Quando um membro é excluído – um filho abortado, um parente com um destino trágico, um ex-parceiro importante – o sistema busca compensar essa exclusão. Inconscientemente, um membro mais novo da família pode passar a representar aquele que foi excluído, repetindo seu destino ou seus sintomas, em um ato de amor cego que busca reintegrar o excluído ao sistema.


Representação gráfica das 3 Ordens do Amor
São três as Ordens do Amor, e a compreensão de cada uma delas é fundamental para desatar os nós que nos prendem a destinos difíceis.

2. As Ordens da Ajuda

Complementando as Ordens do Amor, Hellinger desenvolveu as Ordens da Ajuda, que orientam a postura daquele que se propõe a ajudar, seja um terapeuta, um amigo ou um familiar. São cinco ordens que nos ensinam a ajudar de forma eficaz e respeitosa:

 

  1. A primeira ordem diz que só podemos dar aquilo que temos e só podemos tomar aquilo que necessitamos. A ajuda deve ser modesta e baseada na realidade, sem a pretensão de salvar o outro.

  2. A segunda ordem nos lembra que a ajuda deve se submeter às circunstâncias. Só podemos intervir quando o contexto permite, e devemos nos retirar quando não há mais o que fazer.

  3. A terceira ordem nos ensina a ver o outro como um adulto, capaz de arcar com as consequências de seus atos. Ajudar não é infantilizar o outro, mas sim fortalecer sua autonomia.

  4. A quarta ordem nos orienta a ter uma visão sistêmica. A ajuda não deve se dirigir apenas ao indivíduo, mas a todo o seu sistema familiar, pois a solução pode estar em um lugar inesperado.

  5. A quinta ordem é o amor a tudo como é. A ajuda verdadeira nasce da concordância com o destino do outro, sem julgamentos ou críticas. É um amor que diz “sim” à vida, com tudo o que ela traz.


3. Emaranhados Familiares: A Origem dos Conflitos

Quando as Ordens do Amor são violadas, surgem os emaranhados sistêmicos. Um emaranhado é uma identificação inconsciente com o destino de um ancestral, que leva um membro da família a repetir padrões de sofrimento, doença ou fracasso. É como se a pessoa estivesse vivendo uma vida que não é a sua, presa em um roteiro escrito por gerações passadas. Os emaranhados se manifestam de diversas formas: na repetição de relacionamentos abusivos, na dificuldade de prosperar financeiramente, em doenças que se repetem na família, em sentimentos de culpa ou inadequação sem causa aparente. São os segredos de família, os traumas não elaborados, os lutos não vividos, que criam esses nós energéticos e psíquicos que nos aprisionam.


São os segredos de família, os traumas não elaborados, os lutos não vividos, que criam esses nós energéticos e psíquicos que nos aprisionam.
São os segredos de família, os traumas não elaborados, os lutos não vividos, que criam esses nós energéticos e psíquicos que nos aprisionam.

4. O Cenário Atual: Dados e Reflexões

Ao olharmos para a sociedade brasileira atual, percebemos um cenário que dialoga diretamente com a teoria de Hellinger. Segundo dados do IBGE de 2023, o Brasil registrou um aumento de 4,9% no número de divórcios em relação ao ano anterior, enquanto o número de casamentos recuou 3% (2). Para cada 100 casamentos, ocorreram cerca de 47,4 divórcios. O tempo médio de duração dos casamentos também diminuiu, passando de 16 anos em 2010 para 13,8 anos em 2023. Esses números, frios em sua essência, revelam um profundo sofrimento nos lares brasileiros.


Quantos desses divórcios são fruto de emaranhados não resolvidos? Quantos casais se separam por violarem, inconscientemente, as Ordens do Amor? A dificuldade em manter relacionamentos duradouros, a repetição de padrões destrutivos, a dificuldade em equilibrar o dar e o receber, tudo isso pode ser um reflexo de dinâmicas familiares profundas que precisam ser olhadas e compreendidas.


5. Diálogos com a Psicologia

A abordagem de Bert Hellinger, embora original, dialoga com diversas correntes da psicologia, que também se debruçaram sobre a importância da família na formação do psiquismo.

 

Psicanálise (Freud): Sigmund Freud (3), o pai da psicanálise, já nos mostrava a força dos laços familiares na constituição do sujeito. O Complexo de Édipo, por exemplo, descreve a trama de desejos e rivalidades que se desenrola na família e que molda nossa vida amorosa futura. A ideia de uma “transmissão psíquica” entre as gerações, onde conteúdos inconscientes são passados adiante, também é central na psicanálise e encontra um eco na noção de emaranhado sistêmico.

 

Psicologia Analítica (Jung): Carl Gustav Jung (4), por sua vez, ampliou a compreensão do inconsciente, postulando a existência de um “inconsciente coletivo”, um reservatório de imagens primordiais e arquétipos que são compartilhados por toda a humanidade. Os arquétipos da Grande Mãe, do Pai, da Criança, entre outros, atuam em nosso psiquismo e se manifestam nas dinâmicas familiares. Os emaranhados podem ser vistos como uma identificação com um arquétipo familiar que impede o indivíduo de realizar seu processo de individuação, ou seja, de se tornar quem ele realmente é.

 

Terapia Sistêmica Familiar: A Terapia Sistêmica, com expoentes como Murray Bowen (5) e Salvador Minuchin (6), revolucionou a psicoterapia ao deslocar o foco do indivíduo para o sistema familiar. Para essa abordagem, o sintoma de um membro da família é, na verdade, um sintoma de todo o sistema. Conceitos como “diferenciação do self” (Bowen) e “fronteiras familiares” (Minuchin) são ferramentas para compreender e intervir nas dinâmicas disfuncionais que geram sofrimento, em uma clara sintonia com a busca de ordem e equilíbrio proposta por Hellinger.

 

6. Psicotraumas e Comorbidades

Os emaranhados familiares estão intimamente ligados à transmissão geracional de psicotraumas. Traumas vividos por nossos ancestrais – como guerras, migrações forçadas, perdas precoces, violência, abusos – deixam marcas profundas no campo energético da família. Quando esses traumas não são elaborados e integrados, eles se manifestam nas gerações seguintes sob a forma de transtornos de ansiedade, depressão, pânico, vícios, doenças autoimunes e outras comorbidades. A ciência hoje, através da epigenética, começa a comprovar o que Hellinger já observava em sua prática: as experiências de nossos antepassados podem alterar a expressão de nossos genes, nos predispondo a certas doenças e padrões de comportamento (7). Um estudo de caso hipotético, mas comum na prática clínica, seria o de uma mulher com depressão crônica que, através da constelação, descobre que sua avó perdeu um filho ainda bebê e nunca pôde viver o luto. A neta, inconscientemente, se identifica com a dor da avó e passa a carregar um luto que não é seu. Ao trazer essa história à luz, a cliente pode se diferenciar do destino da avó e encontrar a cura para sua depressão.


Família se abraçando
Olhar para as dinâmicas de nossa família de origem pode ser, por vezes, doloroso. Exige coragem para encarar as feridas, os segredos e as lealdades invisíveis que nos movem. Mas é nesse mergulho, por mais profundo que seja, que encontramos a chave para a nossa libertação.

As Ordens do Amor: Curando a História para Deixar o Amor Fluir

Minha querida leitora, meu caro leitor, chegamos ao final desta jornada de reflexão e, espero, de profunda conexão com sua própria história. Olhar para as dinâmicas da nossa família de origem pode ser, por vezes, doloroso. Exige coragem para encarar as feridas, os segredos e as lealdades invisíveis que nos movem. Mas é nesse mergulho, por mais profundo que seja, que encontramos a chave para a nossa libertação.


Compreender as Ordens do Amor não é sobre julgar nossos pais ou antepassados, mas sim sobre honrar a vida que chegou até nós, com tudo o que ela custou. É sobre tomar nosso lugar de força, em equilíbrio nas trocas e em pertencimento a um sistema que é muito maior do que nós.


Se você se identificou com algum dos padrões descritos, se sentiu o peso de um destino que não parece ser o seu, saiba que há um caminho de volta para casa, para o seu coração. A cura começa quando dizemos “sim” à nossa história, quando incluímos em nosso coração todos os que vieram antes de nós, com amor e gratidão. A partir desse lugar de aceitação, podemos, então, fazer diferente. Podemos escolher o amor que floresce na ordem, o amor que respeita, que equilibra, que inclui. E, assim, construir relacionamentos mais saudáveis, leves e felizes.


Para aprofundar essa jornada de reconexão, recomendo o filme Gonzaga: De Pai para Filho, uma obra tocante que revela como os vínculos familiares, mesmo marcados por dor e distância, podem ser transformados pela escuta, pelo reconhecimento e pelo amor. E convido você a ler o artigo “Análise do filme Gonzaga: De Pai para Filho”, que aprofunda essa reflexão com sensibilidade e sabedoria.

 

Um abraço, Silvia Rocha


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, graduada em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de vínculos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.


Possui formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA pela FGV/RJ e Pós-Graduação pela FAAP/SP.


Contato:

Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta

WhatsApp: (12) 98182-2495



Referências Bibliográficas

(1) HELLINGER, Bert. Ordens do Amor: um guia para o trabalho com constelações familiares. São Paulo: Cultrix, 2007.

(2) INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estatísticas do Registro Civil 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2025. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: 10 set. 2025. 

(3) FREUD, Sigmund. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 

(4) JUNG, Carl Gustav. Arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2011. 

(5) BOWEN, Murray. A teoria dos sistemas familiares. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. 

(6) MINUCHIN, Salvador. Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artmed, 1982. 

(7) SANTOS, E. C.; FERRAZ, F. B. Influência Epigenética e Ambiental na Interconexão Transgeracional do Trauma. Revista Sociedade Científica, v. 8, n. 1, p. 1-15, 2025. 

(8) CONSTELAÇÃO CLÍNICA. 3 Ordens do Amor e 5 Ordens da Ajuda em Bert Hellinger. Disponível em: https://constelacaoclinica.com/ordens-do-amor-e-ordens-da-ajuda/. Acesso em: 10 set. 2025. 

(9) CONSTELAÇÃO CLÍNICA. Emaranhado: Significado em Constelação Familiar. Disponível em: https://constelacaoclinica.com/emaranhado/. Acesso em: 10 set. 2025. 

(10) CNN BRASIL. Número de casamentos recua 3% e divórcios aumentam 4,9% no Brasil, diz IBGE. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/numero-de-casamentos-recua-3-e-divorcios-aumentam-49-no-brasil-diz-ibge/. Acesso em: 10 set. 2025. 

(11) SCIELO BRASIL. TRAUMA E A TRANSMISSÃO PSÍQUICA GERACIONAL. Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/FdrsXSXvBzxV6nWDtMx5Fvw/. Acesso em: 10 set. 2025. 

(12) CABSIN. CABSIN e BIREME publicam mapa de evidências científicas sobre constelações familiares. Disponível em: https://cabsin.org.br/cabsin-e-bireme-publicam-mapa-de-evidencias-cientificas-sobre-constelacoes-familiares/. Acesso em: 10 set. 2025.

Comentários


  • Whatsapp
bottom of page