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A Adrenalina que Consome: A Escolha por Esportes de Risco e os Ecos dos Traumas Familiares

Por: Silvia Rocha


Em uma sociedade cada vez mais acelerada e em busca de estímulos intensos, a atração por esportes que levam a riscos iminentes tem se tornado um fenômeno crescente. A busca pela adrenalina, pelo desafio aos limites do corpo e da mente, e pela sensação de estar vivo no fio da navalha fascina e intriga. Mas o que se esconde por trás dessa escolha? Seria apenas uma busca por aventura ou haveria camadas mais profundas, relacionadas a um desejo inconsciente de autodestruição e a ecos de traumas familiares não resolvidos?


Este artigo mergulha na complexa teia de fatores que podem levar um indivíduo a se engajar em comportamentos de risco, explorando o conceito de "suicídio inconsciente" e a influência dos traumas familiares. Através de uma análise que integra a psicanálise, a psicologia analítica, a terapia sistêmica familiar e outras abordagens, buscamos compreender as motivações ocultas por trás da busca incessante por adrenalina. Vamos explorar como a pulsão de morte de Freud, a Sombra de Jung e os padrões transgeracionais podem se manifestar em escolhas que, à primeira vista, parecem apenas uma expressão de coragem e ousadia.


Ao longo desta jornada, faremos analogias com o momento atual da sociedade, onde a busca por validação e a exposição a riscos em redes sociais se tornam cada vez mais comuns. Analisaremos dados estatísticos, estudos de caso e as perspectivas de diferentes áreas do conhecimento para oferecer uma compreensão aprofundada e multifacetada deste fenômeno. Nosso objetivo é ir além da superfície e convidar o leitor a uma reflexão sobre a complexa relação entre a busca por vida e a pulsão de morte, entre a superação e a autodestruição, e sobre como os laços familiares podem, silenciosamente, moldar nossos destinos.


A busca pela adrenalina, pelo desafio aos limites do corpo e da mente, e pela sensação de estar vivo no fio da navalha fascina e intriga. Mas o que se esconde por trás dessa escolha?
A busca pela adrenalina, pelo desafio aos limites do corpo e da mente, e pela sensação de estar vivo no fio da navalha fascina e intriga. Mas o que se esconde por trás dessa escolha?

Compreendendo a Busca por Risco e o "Suicídio Inconsciente"

A busca por risco, muitas vezes romantizada como uma expressão de coragem e vitalidade, pode, em um nível mais profundo, mascarar um desejo inconsciente de autodestruição. O conceito de "suicídio inconsciente" [1] refere-se a uma série de comportamentos que, embora não tenham a intenção explícita de acabar com a vida, levam a uma deterioração gradual do corpo e da mente, culminando em um fim prematuro. Essa forma de autodestruição pode se manifestar de maneiras sutis e socialmente aceitáveis, como a escolha por esportes radicais, trabalhos perigosos, ou até mesmo em hábitos cotidianos como a alimentação desregrada e a negligência com a saúde.


Sigmund Freud, o pai da psicanálise, introduziu o conceito de "pulsão de morte" (Thanatos) [2], uma força inerente ao ser humano que se contrapõe à "pulsão de vida" (Eros). Enquanto Eros busca a união, a preservação e a construção, Thanatos tende à desintegração, à destruição e ao retorno a um estado inorgânico. Para Freud, o suicídio, seja ele consciente ou inconsciente, é o resultado da predominância da pulsão de morte sobre a pulsão de vida. Ele argumentava que muitos acidentes e atos falhos são, na verdade, manifestações dessa pulsão autodestrutiva, uma forma de o inconsciente expressar seu desejo de aniquilação.


Do ponto de vista neurobiológico, a busca por risco está intimamente ligada ao sistema de recompensa do cérebro e à liberação de dopamina. A dopamina é um neurotransmissor associado ao prazer, à motivação e à recompensa. Em indivíduos com certas predisposições, a busca por sensações intensas e novas experiências pode se tornar uma forma de estimular a liberação de dopamina, criando um ciclo vicioso de busca por adrenalina. A impulsividade, muitas vezes associada a disfunções no córtex pré-frontal (a área do cérebro responsável pelo controle de impulsos e tomada de decisões), também desempenha um papel crucial na escolha por atividades perigosas, tornando o indivíduo mais propenso a agir sem considerar as consequências.


Dados estatísticos revelam que acidentes em esportes de risco são mais prevalentes em indivíduos com certos traços de personalidade, como a busca por sensações, a impulsividade e a baixa aversão ao risco. Embora nem todos que praticam esportes radicais tenham uma intenção inconsciente de se autodestruir, a persistência em comportamentos que colocam a vida em perigo, mesmo após acidentes ou lesões, pode ser um indicativo de que algo mais profundo está em jogo. É como se a busca pela adrenalina se tornasse uma forma de anestesiar a dor emocional, de sentir-se vivo em meio a um vazio existencial, ou de testar os limites da própria mortalidade.


A Influência dos Traumas Familiares

Os psicotraumas, especialmente aqueles vivenciados na infância ou transmitidos geracionalmente, exercem uma influência profunda na psique humana, moldando comportamentos e escolhas de vida. A busca por esportes de risco ou a propensão a comportamentos autodestrutivos podem ser, em muitos casos, uma manifestação inconsciente de traumas familiares não resolvidos. O indivíduo pode estar, sem saber, reencenando padrões disfuncionais, buscando uma forma de lidar com a dor emocional ou de encontrar um senso de controle em situações onde se sentiu impotente no passado.


A Terapia Sistêmica Familiar oferece uma lente valiosa para compreender como os padrões familiares disfuncionais e os traumas transgeracionais podem influenciar a escolha por tais esportes. Murray Bowen, com sua Teoria Familiar, destacou o "processo de transmissão multigeracional" [3], onde padrões emocionais e comportamentais são passados de uma geração para a próxima. Assim, traumas não resolvidos em gerações anteriores – como perdas significativas, violências ou segredos familiares – podem se manifestar em comportamentos de risco nas gerações futuras, como uma tentativa inconsciente de lidar com a ansiedade ou a dor herdada. A "diferenciação do self" [3], outro conceito boweniano, sugere que a capacidade de um indivíduo de manter sua individualidade e autonomia emocional dentro do sistema familiar é crucial. Uma baixa diferenciação pode levar à fusão emocional e à busca por validação externa, o que pode se traduzir em comportamentos extremos para chamar atenção ou provar algo.


Virginia Satir, por sua vez, enfatizou a importância da comunicação e da autoestima na dinâmica familiar. Em famílias onde a comunicação é incongruente [4] ou onde a autoestima dos membros é baixa, os indivíduos podem desenvolver estratégias disfuncionais para lidar com o estresse e a dor. A busca por adrenalina pode ser uma forma de preencher um vazio emocional, de sentir-se valorizado ou de expressar uma raiva ou frustração reprimida. Salvador Minuchin, com a Terapia Familiar Estrutural, focou na organização e nas fronteiras dos subsistemas familiares [5]. Fronteiras difusas, por exemplo, podem levar à superenvolvimento e à dificuldade de um membro em desenvolver sua própria identidade, o que pode impulsionar a busca por experiências extremas como forma de delimitar seu espaço e sua individualidade.


Da perspectiva psicanalítica e da psicologia analítica, a repetição de padrões inconscientes e a busca por resolução de conflitos internos através do risco são temas centrais. A Sombra de Carl Jung [6], que representa os aspectos reprimidos e não reconhecidos da personalidade, pode impulsionar o indivíduo a buscar situações perigosas como uma forma de expressar esses conteúdos inconscientes. A "individuação" [6], o processo de se tornar um ser completo e singular, muitas vezes envolve o confronto com a Sombra. Em alguns casos, a busca por esportes de risco pode ser uma tentativa inconsciente de individuação, onde o indivíduo tenta integrar aspectos de sua personalidade que foram negados ou reprimidos, embora de uma forma potencialmente perigosa. É um caminho tortuoso para a autodescoberta, onde o perigo se torna um espelho para os conflitos internos.


Perspectivas Multidisciplinares e Correlações

A compreensão da busca por riscos iminentes e do "suicídio inconsciente" exige uma abordagem multidisciplinar, que integre conhecimentos da psiquiatria, psicologia e outras áreas da saúde. A psiquiatria, por exemplo, oferece insights sobre como transtornos psíquicos podem predispor indivíduos a comportamentos de risco. O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) é um exemplo notório, caracterizado por impulsividade acentuada, instabilidade afetiva e comportamentos autodestrutivos, como automutilação, abuso de substâncias e gastos excessivos [7]. Esses comportamentos podem ser uma tentativa desesperada de lidar com a intensa dor emocional e o vazio existencial que acompanham o transtorno.


Além do TPB, a depressão e a ansiedade, embora não diretamente ligadas à busca por adrenalina, podem levar a um estado de negligência com a própria saúde e a comportamentos autodestrutivos indiretos. A ideação suicida, mesmo sem a intenção de morrer, pode se manifestar em atos falhos ou descuidos que colocam a vida em perigo. O estresse crônico, comum em indivíduos que vivem sob constante pressão ou que não conseguem lidar com suas emoções, também contribui para o desenvolvimento de transtornos mentais, que por sua vez podem aumentar a propensão a comportamentos de risco.


Do ponto de vista do psicotrauma, as experiências traumáticas, especialmente aquelas vivenciadas na infância, podem moldar a forma como um indivíduo lida com o estresse e a dor. A busca por adrenalina em esportes de risco pode ser uma tentativa inconsciente de reencenar ou dominar experiências traumáticas, de sentir-se vivo após um período de dormência emocional, ou de buscar uma sensação de controle em situações onde se sentiu impotente. Autores como Peter Levine, com sua abordagem Somatic Experiencing, e Bessel van der Kolk, em "The Body Keeps the Score" [8], destacam como o trauma é armazenado no corpo e como a busca por sensações intensas pode ser uma forma de liberar essa energia traumática ou de buscar uma regulação emocional, ainda que de forma disfuncional.


As correlações com doenças físicas e comorbidades são inegáveis. O estresse crônico, resultante de uma vida de busca por adrenalina ou de lidar com transtornos mentais não tratados, pode levar a problemas cardiovasculares, imunológicos e outras condições de saúde. O abuso de substâncias, comum em indivíduos com transtornos de personalidade ou que buscam alívio para o sofrimento emocional, pode causar danos significativos a diversos órgãos. Além disso, a negligência com a saúde física, muitas vezes presente em quadros de depressão ou em comportamentos autodestrutivos inconscientes, contribui para o desenvolvimento e agravamento de doenças crônicas. A interconexão entre saúde mental e física é evidente, e a busca por riscos pode ser um sintoma de um desequilíbrio mais profundo que afeta o bem-estar integral do indivíduo.


Aron Ralston, aos 27 anos, era conhecido por seu estilo de vida independente e por realizar expedições solitárias em ambientes extremos. Em abril de 2003, durante uma escalada em Utah, Aron sofreu um acidente grave ao ficar com o braço preso por uma rocha.
Aron Ralston, aos 27 anos, era conhecido por seu estilo de vida independente e por realizar expedições solitárias em ambientes extremos. Em abril de 2003, durante uma escalada em Utah, Aron sofreu um acidente grave ao ficar com o braço preso por uma rocha.

Estudo de Caso: Aron Ralston – Superação e Reconexão Emocional

Aron Ralston, aos 27 anos, era conhecido por seu estilo de vida independente e por realizar expedições solitárias em ambientes extremos. Engenheiro mecânico e alpinista experiente, ele costumava explorar trilhas e cânions sem informar ninguém sobre seus planos — um comportamento que refletia padrões de afastamento emocional e autossuficiência. Em abril de 2003, durante uma escalada em Utah, Aron sofreu um acidente grave ao ficar com o braço preso por uma rocha. Isolado e sem perspectiva de resgate, passou cinco dias enfrentando fome, sede e dor intensa. Para sobreviver, tomou a decisão extrema de amputar o próprio braço com um canivete.


Durante esse período, Aron gravou mensagens de despedida para sua família e revisitou mentalmente momentos importantes de sua vida. A experiência o levou a reconhecer o valor dos vínculos afetivos que antes negligenciava. Sua tendência a evitar conexões emocionais foi confrontada pela necessidade de apoio, pertencimento e sentido. Após o resgate, ele passou por um processo terapêutico que o ajudou a compreender como sua busca por desafios extremos estava ligada a padrões emocionais não resolvidos. A terapia sistêmica familiar foi fundamental para que ele desenvolvesse formas mais saudáveis de se relacionar com os outros e consigo mesmo, ressignificando sua relação com o risco, a autonomia e os afetos.


A história de Aron foi retratada no filme 127 Horas (127 Hours, 2010), dirigido por Danny Boyle e baseado no livro autobiográfico 127 Horas: Entre a Vida e a Morte (Between a Rock and a Hard Place, 2004), escrito pelo próprio Ralston. A obra cinematográfica dramatiza os eventos vividos por Aron e oferece uma representação intensa de sua transformação física e emocional.


Reconhecer os padrões, compreender as raízes de nossos comportamentos e buscar o autoconhecimento são os primeiros passos para uma jornada de cura e transformação.
Reconhecer os padrões, compreender as raízes de nossos comportamentos e buscar o autoconhecimento são os primeiros passos para uma jornada de cura e transformação.

Entre Sombras e Luz: Um Chamado à Vida

Querido leitor, querida leitora, chegamos ao desfecho de nossa jornada por um tema tão intricado quanto instigante. A atração por esportes de risco, o conceito de suicídio inconsciente e a influência profunda dos traumas familiares nos convidam a mergulhar em nossas motivações mais íntimas. É um chamado à introspecção, à percepção de que somos seres complexos, guiados por forças conscientes e inconscientes que, por vezes, nos conduzem por caminhos paradoxais.


Em meio a essa densidade emocional, emerge uma mensagem de esperança: a possibilidade de uma vida plena. Identificar padrões, compreender as origens de nossos comportamentos e investir no autoconhecimento são passos fundamentais rumo à cura e à transformação. A adrenalina pode ser um impulso para a superação, mas não precisa ser o único combustível. Existe em cada um de nós uma pulsão vital que deseja se expressar de forma saudável, criativa e amorosa.


Que este artigo seja um farol, iluminando possibilidades e inspirando você a abraçar a vida em sua totalidade — com seus desafios e encantos. Lembre-se: a maior aventura é o mergulho em si mesmo, o exercício de se conhecer, se acolher e se amar. E nessa travessia, você não está só. A psicologia, a psicanálise, a terapia sistêmica e outras abordagens oferecem recursos valiosos para desfazer os nós do passado, integrar as sombras e construir um amanhã mais consciente e leve. Não hesite em buscar apoio profissional, caso sinta necessidade de orientação para navegar por essas águas profundas.


Para uma reflexão cinematográfica sobre os limites do corpo e da mente diante do trauma, recomendo o filme 127 Horas (127 Hours, 2010), dirigido por Danny Boyle. Inspirado em uma história real, o longa retrata a impressionante jornada de sobrevivência de Aron Ralston, explorando com intensidade temas como resiliência, dor, isolamento e transformação interior.


Se desejar aprofundar essa perspectiva, convido você a ler o artigo "Filme 127 Horas: Uma Análise Psicológica da Resiliência Humana", que analisa o filme sob uma ótica psicológica e simbólica. É uma leitura que amplia o olhar sobre essa experiência tão humana.


Um abraço, Silvia Rocha


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master
Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master


Silvia Rocha é psicóloga (CRP 06/182727), terapeuta integrativa e hipnoterapeuta master, com graduação em Psicologia em 2005. Fundadora do Espaço Vida Integral, atua com foco no bem-estar emocional, crescimento pessoal e fortalecimento de relacionamentos, oferecendo terapias individuais, de casal, sistêmicas e familiares.







Possui cursos e formações em Psicoterapia Breve e Focal, Psicotrauma, Psicologia de Emergências e Desastres, Doenças Psicossomáticas, Psicanálise, Coaching, Psicologia Transpessoal, Terapias Quânticas/Holísticas, Constelação Sistêmica Familiar e Apometria Clínica Avançada. Com mais de 30 anos de experiência na área corporativa, MBA em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e Pós-Graduação em Negócios pela FAAP/SP, Silvia também realiza Coaching Pessoal.


Contato

Instagram e Facebook: @silviarocha.terapeuta


Referências Bibliográficas

[1] Silva, M. L. S. (2025). Suicídio Inconsciente: uma forma despercebida de morrer. REVISTA LATINO-AMERICANA DE PSICOLOGIA CORPORAL, 12(19), 28–34. Disponível em: https://psicorporal.emnuvens.com.br/rlapc/article/view/195

[2] Bertolozzi, F. (2021). Suicídio em Freud e... além. Psicanálise. Disponível em: https://psicanalise.substack.com/p/suicidio-em-freud-e-alem

[3] Otto, A. F. N. (2020). Contribuições de Murray Bowen à terapia familiar sistêmica. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 20(1), 7-26. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2020000100007

[4] Satir, V. (1986). The Satir Model: Family Therapy and Beyond. Palo Alto, CA: Science and Behavior Books.

[5] Minuchin, S. (1974). Families and Family Therapy. Cambridge, MA: Harvard University Press.

[6] Jung, C. G. (1968). Man and His Symbols. New York: Dell Publishing.

[7] American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.

[8] Van der Kolk, B. A. (2014). The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma. New York: Viking.

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